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Um graffito na avenida General Quiñónez

Theatrum mundi

Indelével, gravado no muro irregular que acompanha a longa avenida General Quiñónez, um graffito desafia os transeuntes da artéria urbana; pelo menos os que passam com olhos de ver: “Agudízate”. Deixo cair os meus sobre a superfície rugosa, detenho-me no tipo de letra e no matiz cromático e imagino o que o artista anónimo pôde querer expressar com esse verbo reflexivo – tão próprio do castelhano sul-americano – e conjugado no imperativo. Sorrio sempre que passo pelo muro, como que surpreendido de novo pelo chamamento de alguém de quem nunca saberei nada e com quem nunca esclarecerei o sentido do graffito. Quase não importa, porém; o quotidiano de Arequipa fornece-me pistas suficientes para decifrar o enigma. Imagino como seria se o chamamento do artista urbano pudesse falar ainda mais alto e ser ouvido pelos azafamados turistas que nunca passarão pela avenida General Quiñónez. E que não abandonarão nunca o centro histórico, património da Humanidade, para se aventurarem pelos arrabaldes rurais de Sachaca, por exemplo, onde fica a escola primária de V. Maldonado. Estende-se até aí um dos extremos da gigantesca aglomeração de gentes que forma a segunda maior cidade do Peru; para cima de um milhão de habitantes. Passo e vou-me convencendo de que o artista urbano não quer saber dos turistas, sempre em roda viva entre Cuzco, Macchu Pichu e o vale do Colca. Não fala para eles, fala para os seus, aqueles que todos os dias caminham pela avenida General Quiñónez, ou que a percorrem encolhidos nas combis e nos minúsculos táxis amarelos. Imagino que lhes queira bradar; reclamar consciência perante o abismo de oportunidades que engole a periferia de V. Maldonado; que olhem para esse mar de gente à sua volta e vejam apenas peruanos, não uma pirâmide que distingue cidadãos de primeira de cholitos e indígenas. Mas também que procurem por si mesmos a imperativa e categórica conduta. Folheio mentalmente o dicionário da língua portuguesa; “agudizar: tornar agudo ou premente”. Depois recordo as regras da gramática e que reflexivo é o verbo que indica que a acção se exerce sobre o sujeito que a pratica. Afinal, concluo, o graffito imperativo do artista que nunca conhecerei tem significado também em português.

Naquele dia, uma outra surpresa espera por mim na avenida General Quiñónez. Num dos cruzamentos de Yanahuara, vou-me apercebendo do pequeno vulto acomodado na reentrância do separador central, o corpo franzino de criança quase indistinguível no descer da noite. Trata-se de E., o miúdo esquivo de oito anos que aparece esporadicamente na escola de V. Maldonado – tão longe dali… – e que naquele dia me lança um sonoro “Profe!”. Viera dos arrabaldes rurais até ao centro – sabe-se lá como! – para fazer malabarismos e pedir umas moedas, junto do irmão mais velho, aos condutores que vão parando nos semáforos de Yanahuara. Atravesso a avenida para ir ter com ele; passo-lhe a mão pelos ombros e digo-lhe que volte para casa, que está a começar a fazer frio. Deixo-o à espera do irmão, que andarilha por ali, e recupero o passo apressado pela desolada avenida General Quiñónez. Mais adiante, do alto do muro rugoso que me fixa o caminho, o graffito surpreende-me uma vez mais com o seu sentido agudo e premente: “Agudízate”.

Por: Marcos Farias Ferreira

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