Quinze meses de governo chegaram agora ao fim e o balanço que se pode fazer é que eles não abalaram o país mas começaram a mexer com alguma coisa.
É indesmentível que este é o primeiro governo, desde há muito, que manifestou uma real vontade de mexer em alguns bloqueios instalados e, mais do que isso, que demonstrou ter um pensamento estratégico relativamente às reformas necessárias. Não ignoro que se tornou imagem de marca do governo fazer a festa e lançar os foguetes antes da obra feita: o simples anúncio das medidas confunde-se com a sua execução, como se bastasse anunciar intenções para que logo elas se transformem em realidade. O caso paradigmático disto foi o suposto ataque ao poderoso lóbi de farmácias e laboratórios, que começou com uma cerrada barragem de artilharia e depois se esfumou no nada, sem que a fortaleza atacada se tenha mostrado minimamente afectada nem os seus reféns, os consumidores, tenham sido libertos do cerco ou aliviados das suas penas. Ter uma farmácia continua a ser dos melhores negócios que se podem ter em Portugal: melhor do que isso só mesmo ter um banco.
Mas é fácil perceber onde é que, de facto, o governo começou a mexer com as coisas: é só ver quem está na rua, a protestar. Essencialmente, foi na Educação e no funcionalismo público, isto é, na reforma do Estado, que se deram os passos mais importantes. Na Segurança Social, houve a coragem de perceber que se caminhava para a ruptura financeira, que outro governo socialista jurara, há poucos anos, que estava fora de horizonte até 2050. A solução preconizada tem o benefício de enfrentar o problema sem subterfúgios, mas o seu mérito releva mais de contas de matemática do que de opções políticas claras (e, a este respeito, devo dizer que a tão anunciada contraproposta do PSD sobre a Segurança Social, anunciada há uma semana no debate sobre o estado da nação, pareceu uma coisa pensada de véspera depois de uma busca no Google). Eis o que está a crédito do governo. Noutros sectores, marcou-se passo.
Na Agricultura, a situação é confusa, com uma divisão clara entre os agricultores do norte, que apoiam o ministro, e a CAP e os do sul, que o enfrentam ferozmente. Mas não se trata, claro, de divergências sobre política agrícola: apenas divergências sobre os critérios de repartição dos subsídios. Na Justiça, onde habita um ministro errático e atrapalhado (que saudades do seu antecessor!), entrou-se de leão e saiu-se de sendeiro. Escolheu-se como primeiro teste aos magistrados a questão secundária das férias: eles pegaram na chamada «reforma» e ridicularizaram-na, aproveitando, de caminho, para mostrar que quem manda ali são eles, aos ministros cabe apenas arranjar computadores e mandar fazer obras nos edifícios. Continua a ser a reforma mais urgente de todas, mas duvido que este governo chegue sequer a conseguir sacudir a poeira. Na Saúde, Correia de Campos prepara-se para terminar dois anos de mandato com uma única alteração profunda, que não tem que ver com saúde pública (senão, preocupava-se com os altos índices de poluição atmosférica e o incumprimento dos Acordos de Quioto), mas sim com a moral publicamente ditada: é a futura lei de inspiração fascista de repressão aos fumadores.
Onde as coisas correram francamente mal foi no Ministério da Economia e no do Ambiente. Manuel Pinho talvez seja o ministro que mais trabalha e mais se esforça, mas ou tem azar (GM, Siderurgia de Sines) ou vai a demasiados fogos ao mesmo tempo. Secundado pelo presidente da API, ele mostra uma ânsia de captar investimentos que, sendo em si louvável, torna uma anedota o palavreado sobre o desenvolvimento sustentado. Está-se a criar a ideia de que quem quer que agite vagas intenções de investimento ou criação de postos de trabalho, nem que seja para produzir caracóis nas Berlengas ou urbanizar o Terreiro do Paço, é imediatamente agarrado, financiado, isentado, empurrado para o telejornal, sufocado em apoios pela API e pelo Ministério da Economia. E, empurrado neste turbilhão de «desenvolvimento», o pobre ministro do Ambiente todas as semanas abre mão de mais qualquer coisa, que nunca chega para saciar a voracidade dos «investidores» e dos autarcas, e hoje em dia, que se note, já só pede que não construam mais nas falésias, porque o Ministério não tem verba para as mandar reconstruir a betão depois.
A ideia essencial que daqui retiro é que se continua a planear sobretudo sobre a conjuntura, que estamos ainda muito longe de chegar à raiz do mal em vários domínios. Quando pensa para a frente, o governo tem tendência para pensar mais do mesmo e mal: a OTA e a aposta nas grandes públicas, no betão e no turismo de massas são disso um exemplo inescapável.
Mesmo na frente conjuntural económica, onde finalmente há algumas luzes verdes a piscar, fica-se com a ideia de que esta débil sensação de alívio não é o inverter de um ciclo descendente, mas uma aragem que pode ser apenas passageira. A economia recomeçou a crescer, mas a uma taxa de 1% ou 1,1%, que é a mais baixa dos 25: ou seja, continuamos a ficar para trás relativamente à Europa. As exportações – a melhor notícia – cresceram 7,2% no primeiro semestre, mas apenas porque a Europa que cresce nos compra mais. O investimento privado, apesar de tantos empurrões públicos, continua a hibernar, e o desemprego limitou-se por ora a deter a descida vertiginosa para o abismo. Vá lá que a inflação continua controlada e que o défice tem sido paulatinamente reduzido. Mas não à custa da diminuição dos gastos públicos e sim à custa do aumento dos impostos, o que não é recomendável, ou da melhoria da colecta fiscal, o que já é de aplaudir. Isto significa, pois, que é o esforço dos contribuintes que continua a sustentar um Estado que não pára de gastar cada vez mais dinheiro, apesar de consumir já 50% da riqueza nacional. E de fora do esforço contributivo continuam inexplicavelmente e por estritas razões de ordem política muitos sectores da economia, beneficiados com injustificáveis privilégios de natureza fiscal. No essencial, mantém-se a regra iníqua de sempre: quem mais investe e quem mais trabalha paga para quem menos riscos corre e mais descansa.
Balanço final: tudo, obviamente, é infinitamente melhor do que aquilo que tínhamos antes – nem outra coisa seria possível. Sócrates deu mostras de querer agitar o pântano, umas vezes bem, outras ficando aquém do necessário, por falta de coragem, falta de uma visão clara e inteiramente nova sobre os problemas, ou incapacidade de fazer mover os interesses e a opinião pública instaladas no habitualmente. Talvez seja o preço a pagar para que, paulatinamente, os portugueses vão percebendo que os tempos mudam e que quem não muda com eles esfuma-se lentamente.
Por: Miguel Sousa Tavares