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Termidor

1. Como outra qualquer fórmula, os diferentes regimes políticos, ao longo do tempo, apresentam variáveis e constantes. As primeiras são o cerne da luta política e das construções ideológicas. As segundas são tema para filósofos e cépticos. Uma das constantes mais interessantes é a percentagem relativamente estável de ganhadores e perdedores. Observável em todos os modelos económicos e correspondentes sistemas políticos. O que realmente varia é a forma como os ganhadores se revelam e subsistem, ou a maior ou menor arbitrariedade com que os perdedores são criados e a reversibilidade dessa situação. Mas a proporção mantém-se. Nos regimes ditatoriais com economia planificada, a arbitrariedade é brutal, o mérito é substituído pela subserviência e perder torna-se uma questão de sobrevivência. Nos regimes onde uma economia de mercado coexiste com a ausência de democracia, os ganhadores e os perdedores substituem-se a um ritmo alucinante, sem regras, sob a vigilância de um Estado omnipresente. Só nos regimes democráticos consolidados, com uma economia aberta, é possível ganhadores crónicos coexistirem com perdedores transitórios e uma percentagem do ganho amenizar, com moderação, os custos da perda. Mas, sobretudo, é só aí que, ganhar e perder, se tornam questões de motivação, de inteligência e de mérito. Claro que as oportunidades estão desigualmente distribuídas, mas os elevadores sociais funcionam. E há variadas formas de essas qualidades se revelarem. E nem sequer é a sua manifestação estatística que pode definir a virtude individual e o bem-estar coletivo.

2. Há dias, recebi no escritório um velho amigo, com quem partilhei alguns episódios da turbulência juvenil. Inevitavelmente, do seu lado a conversa deslizou para a evocação do passado. Matéria em que me tenho esforçado em ser tão lacónico quanto perdulário. Sabendo que retornar a ele sem critério pode abrir a caixa de pandora. Ou seja, a perigosa tentação de o rearranjar, pintando-o com cores gloriosas e míticas. Mas, para o meu amigo, eram grupos musicais, que me soavam a nomes de espécies extintas. Eram acampamentos alucinados, onde se escondiam os haveres debaixo da areia. Era a C…, ganda maluca! Eram as noites fumarentas e internacionais no Centro C. Eram os vomitanços épicos…. Eram os concertos tresloucados. Claro que não é desagradável debicar nesse maná. Mas só para o poder apreciar como um álbum de fotografias. Só para o dissolver nas circunvalações do tempo. Só para exercitar a agilidade e a multiplicidade. Não era o caso do meu amigo. Para ele, o passado era um filme cuja estreia adiou sempre. Uma tatuagem incompleta, mas nem por isso menos visível. Calcificou. Coisificou. Foi apanhado na rede do tempo, de onde nunca conseguiu escapar. De tal forma que a cumplicidade de outrora se tornou um empecilho. E a proximidade redundou num abismo impossível de transpor.

3. Algumas conclusões retiradas da minha breve e intensa incursão no mundo da política paroquial guardense: 1- não há heroísmo, substituído pela persistência; 2- não há ideias, boas ou más, mas um modelo que as anula, esvazia, ou enfatiza até perderem o sentido; 3- os soldados são preferidos aos militantes e ambos aos que pensam pela própria cabeça; 4- por norma, prevalece a dissimulação do verdadeiro móbil da acção (exemplo: uma candidatura anuncia que vai lutar por objectivos grandiosos e eloquentes, mas na verdade, todo nasce de um ressentimento, um desentendimento experimentado pelo mentor da empreitada); 5- ao contrário do princípio da Navalha de Occam, que manda recorrer sempre à explicação mais simples para um fenómeno, complica-se o que é simples, troca-se a legibilidade pela opulência discursiva; 6- bater com a porta não é visto como uma afirmação de autonomia e de liberdade, mas como uma “traição”, sendo maior a censura daqueles que ficam e não têm coragem para sair; 7- embora nunca confessada, a ambiçãozinha pessoal cintila sempre no fundo do copo, o que leva a que a postura mais rentável no terreno seja o clássico ‘fazer-se de morto’.

4. Chega o tempo em que sabemos exactamente com quem ficamos. Não com aqueles que simplesmente estão de acordo connosco. Não com aqueles que ficam suspensos do ténue fio da gratidão, ou da memória. Não com aqueles com quem partilhamos bons momentos. Ou que simplesmente admiramos como adversários, ou como mentores. Até pode acontecer que qualquer uma destas qualidades, virtudes, ou recordações partilhadas seja suficiente para acreditarmos. Mas, como dizia no início, há um momento em que tudo, excepto uma coisa, parece curto. O momento em que a única condição que colocamos a quem está connosco é que nos respeite. E quem não o faz, o mais certo é ficar pelo caminho. Perguntarão vocês se isto não será fruto da arrogância, do orgulho, ou de uma irredutibilidade caprichosa. Não, meus amigos. É o tempo. O tempo que se torna precioso e já não dá para mais senão para os que nos merecem.

Por: António Godinho Gil

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