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Tangentopoli

Theatrum mundi

O governo Prodi II caiu e o caimão vislumbra a oportunidade de regressar ao palácio Chigi, símbolo e sede do poder político italiano desde 1961. Caiu o sexagésimo primeiro governo em sessenta e dois anos de democracia e a campanha eleitoral para as eleições antecipadas que terão lugar a 13 e 14 de Abril já está em marcha. À direita, Berlusconi e Fini procuram aglutinar o Popolo della Libertà e clamam que a pátria tem de voltar a erguer-se; à esquerda, Walter Veltroni e o novo Partito Democratico colam-se ao marketing político de Barack Obama, insistem em que todos juntos, conseguimos! (Yes, we can! / Insieme, si può fare!) e contra-atacam que não é a pátria, mas a política, que tem de voltar a erguer-se, numa clara alusão à truculência, às gafes políticas e aos processos judiciais que não largaram o patrão da direita enquanto permaneceu no poder. Talvez valesse a pena agora repor nas salas portuguesas Il Caimano, o magnífico filme de Nanni Moretti que passou quase despercebido em 2006, aquando da sua estreia (que coincidiu com a campanha para as eleições legislativas italianas de 9 e 10 de Abril). Afinal de contas, a história que Moretti conta em Il Caimano é a história mais recente de Itália, a história que se confunde com a de Berlusconi e com as origens e o carácter da tangentopoli. Tangenti + polis, cidade de perigosas tangentes entre políticos e empresários, cidade onde se mercadejam todos os favores e onde a consequente degenerescência do sistema político abriu o caminho para a intervenção dos magistrados, na famosa operação mani pulite. No seu início, tangentopoli era Milão, a cidade onde eclodiu o escândalo de corrupção que implicou Mario Chiesa, presidente do famoso Pio Albergo Trivulzio. Posteriormente, e com o conhecimento da verdadeira dimensão do fenómeno que se escondia por debaixo do manto diáfano dos brandos costumes italianos, tangentopoli foi o nome dado à complexa teia social e político-partidária que pôs fim, entre 1992 e 1994, à primeira república italiana. Bettino Craxi, histórico dirigente dos socialistas italianos, e acusado de graves delitos no seguimento do processo mãos limpas, refugiou-se na Tunísia e viria a falecer, no ano 2000, na cálida estância turística de Hammamet, do outro lado do lago mediterrâneo.

Desde então, o sistema político-partidário italiano encontra-se em recomposição. A experimentação tem sido grande, sendo o objectivo essencial permitir a constituição de dois pólos políticos aglutinadores das preferências dos eleitores, e a consequente facilitação de maiorias parlamentares e a governabilidade do país, a par de uma reorganização territorial a caminho da federalização. Passados quase quinze anos, e como a recente crise no Senado deixou bem claro, os problemas não foram ultrapassados. Por outro lado, a caminhada para estas eleições há muito inevitáveis pode ser vista como o último estádio da recomposição do sistema partidário, em direcção a um bipartidarismo sempre contestado pelos movimentos mais à esquerda e mais à direita. Com o fim da guerra fria e o processo mãos limpas, nos anos noventa, os partidos do pós-guerra foram pulverizados e acabaram por desaparecer. Democratas-cristãos, socialistas e comunistas passaram os últimos quinze anos em disputas fratricidas pelo direito de usar velhas e novas bandeiras, velhas e novas siglas partidárias, ao mesmo tempo que empreenderam arrojados caminhos federadores e superadores das antigas dicotomias. À direita, a populista Forza Italia tenta a federação com a Aliança Nacional, parte dos antigos socialistas e os novos democratas-cristãos acabados de sair do governo Prodi, em nome de um novo sujeito político, o Popolo della Libertà. No vasto espaço do centro-esquerda, várias tendências socialistas, sociais-liberais e sociais-cristãs, assim como os antigos eurocomunistas órfãos do marxismo e convertidos, nos anos noventa, em Sinistra Democratica, fundaram o novíssimo Partito Democratico, mas evitam, por agora, os inevitáveis debates ideológicos sobre o fundo consensual do projecto que o poderão vir a minar (designadamente na hora de escolher a filiação junto de uma das grandes famílias partidárias europeias). Daí que já surja, mais à esquerda, a alternativa La Sinistra e L’Arcobaleno, uma espécie de esquerda arco-íris que federa comunistas mais ortodoxos e verdes, e onde a utilização da foice e do martelo como símbolo eleitoral promete criar novas dissidências.

A história italiana do pós-guerra, o avolumar da tangentopoli e os casos já posteriores que não podem deixar de salpicar o império mediático de Berlusconi mostram bem de que maneira, sob a aparência de um processo de consolidação e normalização democrática fora de discussão, se pode esconder uma sinistra teia de favores cruzados que prejudica os interesses do estado, pulveriza o sistema político-partidário e mina a coesão social. Vale a pena ter este quadro em mente numa altura em que o vasto centro político português se defende, em bloco, das recentes alegações do bastonário dos advogados e quando rejeita, também em bloco, a proposta para a criação de uma comissão parlamentar que deveria investigar a (mais que provável) passagem de prisioneiros por território português, entre 2002 e 2006, a caminho da base militar norte-americana de Guantánamo.

Por: Marcos Farias Ferreira

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