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Tábua de Marés

“Gil e Vicente – Uma viagem de barca ao inferno”

Associação Mau Artista (http://www.mauartista.blogspot.com/)

Encenação: Paulo Calatré

Interpretação: Nuno Preto e Pedro Damião

Café Concerto do TMG, 11 de Dezembro, pelas 22h00

Para quê colocar dois actores desmultiplicando-se nos vários personagens que povoam a maior alegoria moral escrita por Gil Vicente? A este desafio respondeu a Associação Mau Artista, uma estrutura dinâmica que, embora formada há três anos, já produziu 10 espectáculos numa perspectiva iconoclasta. Apresentando agora ao público guardense esta sua mais recente produção. Ora, há quem aponte ao “Auto da Barca do Inferno” o mesmo propósito moral da “Divina Comédia”. Há alguns ingredientes comuns, é certo: a expressividade pictórica, a alusão aos sete pecados capitais, a morte como destituição das hierarquias e marca do efémero, a (in)justiça terrena analisada como suporte narrativo. E talvez, em certa medida, o cenário. Mas as semelhanças acabam aqui. Vicente apresenta-nos uma tragédia com sabor a comédia. Uma alegoria, é certo, mas atravessada pelo picaresco especificamente peninsular. Onde os personagens tentam iludir o Anjo e o Diabo acerca das suas virtudes. A viagem que os espera será feita através de um “braço de mar” no qual estão ancoradas duas barcas: uma que conduz Paraíso e outra ao Inferno; aquela tripulada por um Anjo, esta pelo Diabo e seu companheiro. O cenário é, cósmico, já que trata do destino das almas. Toda a dramaturgia é organizada em função de dois mundos em comunicação: o terreno e o sobrenatural. Todos os personagens conservam na memória a sua autenticidade terrena e ainda estão comprometidos com o seu estilo de vida, social ou profissional, envergando objectos “emblemáticos” a eles associados. A barca é, assim, símbolo de travessia, de viagem, e constitui, ela própria, uma alegoria do destino. Por outro lado, os vários candidatos á justiça divina, mesmo individualizados, de que o onzeneiro, o parvo, o corregedor, o fidalgo, o frade ou a Brígida. valem sobretudo como tipos sociais ou psicológicos. Aqui, nada de novo. E os dois barqueiros estão longe de ser imparciais. “Gil e Vicente, Uma Viagem de Barca ao Inferno”, é um espectáculo que tanto funciona para um público escolar, como em ambientes e espaços não convencionais, onde garante o interesse do público em geral. Onde se inclui o esforçado trabalho físico desenvolvido pelos actores, a óbvia intencionalidade clownesca e a adaptação à linguagem da companhia. Por sua vez, o cenário, simplificado, mas eficaz, é um ponto de partida para a improvisação. Uma bicicleta, um escadote de madeira e malas de viagens a abarrotar de adereços / memórias serão, aos olhos dos actores e dos personagens, o cais, as barcas e ajudarão na identificação dos personagens. Assim como o escadote será a barca do inferno, para logo de seguida ser a barca do paraíso, um funil poderá ser o chapéu do parvo. Um texto clássico, a que este grupo acrescentou significados novos e estimulantes.

“O Tambor” (“Die Blechtrommel”), 1978

Realização: Volker Schlondorff

A partir do romance “O Tambor”, de Günter Grass, 1959

Duração: 1:41

Pequeno Auditório do TMG, 9 de Dezembro.

Em boa hora este filme de culto da cinematografia alemã, que recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, foi exibido entre nós. Danzig/Gdansk, Alemanha, durante os anos 20/30 do século passado. A história é narrada a posteriori pelo protagonista, Oskar Matzerath, que no livro é nessa altura interno num hospício. Logo após o seu rocambolesco nascimento, a mãe promete-lhe que, ao completar três anos, ganharia um tambor de latão. No dia da comemoração de seu aniversário, após presenciar os jogos eróticos entre sua mãe e seu primo com quem mantinha um caso (uma sequência que faz lembrar uma outra em “O charme discreto da burguesia”, de Buñuel), Oskar decide que não iria crescer mais e força um acidente. Provocando assim um anacronismo fisiológico: deixa realmente de crescer. Quando o seu padrasto e outros tentam tirar-lhe o seu adorado tambor de latão, Oskar demonstra o seu talento bizarro: com um grito super agudo, faz estalar os vidros em redor. Entretanto, o movimento nazi afirmou-se na Alemanha e o padrasto adere ao movimento, entre outras figuras próximas. A história do jovem Oskar, em tom de comédia, começa muito antes, quando os seus avós se conheceram no campo (uma cena divertidíssima debaixo da saia da avó). Na cidade de Danzig existia uma minoria étnica de onde provinha Oskar: os cassúbios, que não se consideravam nem alemães nem polacos. Tendo pago por isso um elevado preço, ao perder-se entre os conflitos que marcaram a primeira metade do século na Europa. O que tem de divertido, “O Tambor” tem de crítico e sagaz também. Um miúdo apresenta-se como um incorrigível observador. É através do que ele vê que acompanhamos o rumo da história. Sempre acompanhado do seu inseparável tambor vermelho e branco e da sua voz incomum. É o olhar descomprometido de uma criança analisando o mundo adulto e resolvendo não pertencer a esse mundo: as eternas convenções sociais, casamentos arranjados, amores impossíveis, as aparências, o espectáculo da política. A propósito, a sequência mais caricata da obra acontece durante a recepção do Partido local a um dirigente nazi, na praça principal. Durante a cerimónia, o pequeno Oskar, escondido, toca o seu tambor. É quanto basta para o desconcerto da banda se instalar, transmitindo-se, de forma contagiante, para a assistência, que começa a dançar uma valsa. A chuva encarrega-se de dispersar o que resta da ocasião. Um filme que continua a surpreender pela subtileza bem-humorada e pela contundência com que interpreta uma época conturbada.

Por: António Godinho Gil

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