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Sermos Avós

Para os meus amigos e colegas na hierarquia mais antiga da família pequena, Daniel e Maria José Sampaio

Foi um telefonema longínquo. Da nossa filha mais velha. Disse-me: – nasceu! Era o dia em que eu apresentava mais um livro sobre crianças, na Cidade da Guarda, com Daniel Sampaio. Fiquei sem palavras. Como era evidente, tinha estudado crianças ao longo de dezenas de anos. Com amor e paciência, em silêncio e com orgulho paternal. Como me era habitual, tinha solicitado aos mais novos, desde o primeiro dia, detalhes sobre a sua genealogia. Fomos construindo esse precioso documento entre os Picunche da Cordilheira dos Andes, as crianças da Freguesia de Vila Ruiva, na Beira Alta, e, ao longo de vários troços de tempo, normalmente um ou dois anos cada vez, na Paróquia de Vilatuxe, na Galiza. Sítios diferentes e distantes. Em todos eles, as crianças vinham ter comigo no dia seguinte com o diagrama da composição do lar. Perguntava eu: – Quem te contou tudo isto? A resposta habitual era: Eu só, conheço a minha família. Retorquia eu: – mas é assim tão pequena? A mais esclarecida das crianças sabia dizer que não, que haviam mais em outros sítios da terra. O meu pedido habitual era para trazer um grande lençol de papel com a família toda. Lá iam as crianças e dia após dia, o lençol ia sendo acrescentado. Perguntava eu: – Quem foi que te contou tudo isto? A resposta unívoca dessas crianças todas, de países diferentes, distantes e de línguas diferentes – luso português, luso galaico, mapudungum1 e castelhano pré cordilheira, eram sempre os avós que e guardavam a memória da família. Não por escrito, mas ficava para sempre ao fazermos esse grande lençol. Lençóis de papel que guardo comigo, de tantos sítios visitados, transferidos para os meus livros.

Mas, uma coisa era essa alegria de sermos pais, a minha mulher e eu, outra, completamente diferente, era subir na hierarquia das relações de família. Sermos pais, é o cuidado de amamentar, acarinhar, vestir, ensinar, passear, ter a atenção concentrada nos trabalhos dos nossos descendentes e tomar conta dos amigos que venham a ter, se ou não convenientes e adequados. Como relato no meu e-book de 2008, Mis Camélias – Recuerdos de padres interesados2. Esse trabalho dura até o dia em que essa a nossa descendência cresce e apenas vão consultando a nossa memória de como é criar aos seus filhos. E nós, pais interessados, respondemos com cuidado e sem receitas: “nós fizemos isto, quanto a ti, deves saber como correm os tempos, diferentes do dia em que eras criança”.

É o papel do laku e da chuchu o kudé papai. Que levamos muito a sério. É esse ver, ouvir e calar, esse dia que é apenas para os avós estarem com os filhos dos filhos e contar histórias ou do capuchinho vermelho ou de como era a infância dos seus pais. A infância inteligente e paciente, não essa infância dos berros e do não estudo, essa é a memória que deve ser guardada até os nossos próprios filhos a narrarem E, se for preciso, desenhar caras paterno/materna, levar para a casa um neto se os nossos filhos precisarem, mas educar como eles fariam se estivessem presentes. Para não cortar laços, para guardar a memória do carinho desse pai/mãe necessariamente ausentes. Ser laku é um papel muito sério, não é para brincar nem para, às escondidas dos nossos filhos, corromper o comportamento dos nossos netos.

No dia que fomos laku e kudé papai, a minha mulher e eu passamos a ter esse imenso cuidado de não falar para corrigir, se os pais estão presentes; se ausentes, dizer à moda dos pais. E, no dia sagrado dos avós, uma vez por semana, como Daniel Sampaio me tem confidenciado e relata no seu mais recente livro, toda e qualquer tarefa fica de parte, como nós fazemos com Tomas e Maira van Emden, e teríamos feito com Bem I Ilsley, se não tivesse entrado na eternidade uma hora após o seu nascimento. Os nossos filhos passaram a ser crianças durante um tempo. A kudé pape foi a mais importante, como mãe da mãe frustrada. (?)

No dia da Guarda, desse ano 2000, ao saber que era laku, não parei de escrever livros para os nossos mais novos saberem como eram os seus pais quando tinham a sua idade. E para eles saberem como são as outras crianças. Passei a ser um pai distante e um avô sempre disponível conforme os cânones dos nossos descendentes. É assim que penso, é assim que faço, porque os amo.

Por: Raúl Iturra

ISCTE/CEAS-CRIA/Amnistia Internacional

10 de Abril de 2009, aniversário do nascimento da bisavó paterna

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1 Abuela paterna y sus nietos: kuku. / Abuela materna. Sus nietos y nietas: chuchu. / Abuelita: kudé papai (dicen así los niños). Abuelo paterno y sus nietos: laku. / Abuelo materno y los nietos del mismo: cheche.

2 Iturra, Raúl, 2008: Titulo : Mis camélias

URL: http://www.monografias.com/trabajos917/camelias-etnopsicologia-infancia/camelias-etnopsicologia-infancia.shtml

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