O distrito da Guarda possui um vasto património histórico-cultural que, de um modo geral, tem sido esquecido, ou mesmo destruído, por razões muito diferenciadas.
O conceito de património não se circunscreve, atualmente, à conceção que prevalecia há alguns anos atrás, resumindo-o a monumentos, às coleções de pintura, às esculturas e a palácios. «Os edifícios, as histórias de vida das populações rurais, piscatórias, os seus utensílios de trabalho nos mais variados sectores, são património. A memória coletiva de uma determinada população estende-se aos territórios onde vive, aos seus monumentos, aos vestígios do passado e do presente, aos seus problemas, à cultura material e imaterial e às pessoas».
Assim, o património edificado é uma das várias abordagens que podem ser efetuadas de entre a definição mais lata de património cultural. É, aliás, a este nível que têm sido cometidos os maiores atentados, perante a indiferença e a impunidade de quem, por direito, tinha obrigação de atuar.
Essa apatia começa, desde logo (e como por várias vezes dissemos nesta coluna) no próprio cidadão comum, conquistado por um doentio comodismo que orienta os seus padrões culturais no limitado horizonte do quotidiano profissional ou dos amenos diálogos e discursos de circunstância em círculos de convívio e lazer.
J. Manuel Ribeiro escrevia, há uma década, que «o primeiro problema que aqui se subentende para a intervenção no património português é uma denunciada educação cívica insuficiente perante os valores culturais, sejam eles de carácter regional ou nacional. Não é possível uma atitude de valorização e preservação dos valores patrimoniais sem que a sensibilidade cívica seja despertada e educada para os valores materiais e imateriais que configuram a identidade portuguesa». A preocupação em preservar o nosso património cultural não é recente; muito se tendo escrito mas tem sido feito muito pouco (ou nada…) relativamente ao que seria de esperar.
Na Guarda, os pavilhões que outrora pertenceram ao Sanatório Sousa Martins (os exemplos mais emblemáticos, atualmente, são o Pavilhão Rainha D. Amélia e o Pavilhão D. António de Lencastre) constituem um exemplo muito concreto dessa falta de sensibilidade cívica e outrossim do desleixo das entidades oficiais.
Uma atitude tanto mais grave quanto o Sanatório foi uma instituição que marcou o desenvolvimento da cidade durante a primeira metade deste século. Na verdade, bem se poderá dizer que o Sanatório Sousa Martins constituía uma cidade dentro da cidade mais alta de Portugal, cuja identidade histórico-cultural se tem vindo a perder no meio de uma expansão urbanística descontrolada, face à ausência de uma política eficaz de salvaguarda, defesa e valorização do património guardense.
Há muito tempo que temos vindo a defender a urgência em se preservar o património edificado pertença do Sanatório Sousa Martins, o seu estudo, divulgação e animação, garantindo-o como espaço de Saúde (não só física) e de Cultura, afirmando-o como museu vivo e recusando que se transforme num “túmulo de memória”…
Embora a situação geográfica e as especificidades climatéricas associadas tenham proporcionado à Guarda a designação de “Cidade da Saúde”, a construção do Sanatório Sousa Martins certificou e rentabilizou as condições naturais da cidade para o tratamento da tuberculose, doença que vitimou, em Portugal, largos milhares de pessoas.
A Guarda foi, nessa época, uma das localidades mais procuradas de Portugal, afluência que deixou inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural. A apologia desta cidade como centro urbano propício ao “tratamento da doença”, foi feita por distintas figuras da época; começou a ser “a montanha mágica” junto à Serra, envolta ainda na bruma da atração e do desconhecido, palco frequente do magnífico cenário originado pela neve, que bem se podia transpor para o quadro descrito por Thomas Mann, no seu conhecido romance.
A classificação do conjunto do antigo Sanatório Sousa Martins como interesse público é de grande importância, pecando por tardia, pesem os esforços de quem, há anos atrás, desencadeou – é bom que não se perca a memória – o processo que, finalmente, conduziu à portaria publicada esta semana pelo Secretário de Estado da Cultura.
Esperemos que o reconhecimento agora formalizado trave a degradação dos pavilhões do Sanatório e zona envolvente – onde há um rico património florestal – e suscite junto das entidades responsáveis as medidas e os projetos indispensáveis, e urgentes, envolvendo todos os profissionais que trabalham na ULS (que deveriam estar mais esclarecidos e identificados com a história da referida unidade sanatorial) e a comunidade na defesa deste património ímpar, de interesse público!
Por: Hélder Sequeira