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Repiscar a inocência de 99

Estou desiludida. Estou farta de ouvir as pessoas dizerem que é impossível remar contra a corrente, que temos de nos roçar constantemente numa esfera gasta e mal polida, que é esta coisa a que chamam “sociedade”. Culpo os meus e os vossos antepassados, pelo que deixaram de construir e pelo que não conseguiram fazer melhor. Culpo os presentes, por não conseguirem continuar aquilo que os anteriores fizeram bem. Culpo os homens e as mulheres, por serem a negação de uma cultura qualquer, por muito atroz que se considere. Culpo as instituições, porque representam uma matéria informe que esmaga os conceitos. Condeno a falta de exigência das pessoas perante tais instituições, condeno as desculpas e queria poder condenar pessoas, por não saberem naquilo que acreditam, e porque é que acreditam, e até por terem mau gosto. Sinto náusea ao estar rodeada por sujeitos amorfos, cinzentos, cansados, sem interesse. Exijo beleza, inteligência, boas conversas, que alguém se preocupe. Exijo razões para se fazerem coisas, para se construir uma cidade, um lugar onde se possa viver e não sobreviver.

Não se suporta a mesquinhez, a corrupção que ignora o bem-estar público, sempre em privilégio do estimável ego que sem o colectivo será sempre falso, deformado ou doente. O fenómeno da globalização, da ampla e inesgotável recolha de informação, da tentativa de absorção do agradavelmente mundano, não se revela aqui. Há sempre alguém, “com mais experiência”, que vem dizer que a Guarda não é Lisboa ou o Porto (os únicos modelos que conhecem), e que aqui as coisas têm que se fazer doutra forma. Mas afinal qual é a ambição destes cidadãos?

Era preferível ouvir vozes e ser considerada louca, do que ter que aguentar comentários mesquinhos, críticas ensossas, sujeitos bem vestidos por fora, mas sem nada que despir por dentro. Ter que pedir algo à loucura, que o mundo que se diz saudável, não me pode dar, é ter que assumir que a “sociedade” está moribunda, ou pelo menos intelectualmente incapacitada.

Onde estão os gigantes, os Homens que positivamente nos esmagam, porque acreditamos que o mundo está cheio de coisas que não descobrimos ainda? Estão atrás das cortinas, debaixo dos bancos de jardim, ou a tentar despoluir-se, fechados em casa, deixando o ruído cultural lá fora, na sarjeta, tentando adormecer dentro deles.

Os soldadinhos de chumbo, que conseguem sentar-se nas “cadeiras do ócio”, não os deixam falar. Chamam-lhes loucos e idealistas, como se isso fosse um defeito. Depois, “dão-lhes um desconto” e permitem-lhes comentários, em sessões de teatro aberto, onde esperam que não vá muita gente porque, por aqui, poucos vão a essas coisas, quando as há.

Até onde é preciso espremer a imbecilidade humana? Talvez até anular a capacidade que o Homem tem de se elevar sem mecanismos externos ao seu próprio corpo, talvez até o Homem morrer.

Por: Cláudia Quelhas

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