Embora a leitura de livros de ficção e de poesia não seja bem “o que está a dar”, a vontade de ser escritor, ganhar a fama, sentir o reconhecimento público, continua na máxima força. Os cursos de “escrita criativa” são mais que muitos (presenciais ou na net, para miúdos, adultos e seniores, nacionais e locais). E as edições de autor ou “a pedido” em editoras ad hoc são às centenas e aos milhares, não se importando os candidatos a famosos de desperdiçar centenas ou milhares de euros por meio quilo de papel. Há no fundo de nós a ideia de que podemos surpreender, que a nossa chama não é igual à dos outros e que a aura que emanamos tem de se realizar num livro. Faz bem ao ego. Mas também é do senso comum lembrar aos novéis escritores que muitos dos aplausos e reverências que recebem são meramente circunstanciais, provêm da entourage próxima e não poderiam ser outra coisa que mera simpatia. O segundo patamar, o reconhecimento pelos prémios, pelos críticos ou pelas vendas, esse é bem mais exigente. E para muitos o livro morre no dia da apresentação, guardado depois em pilhas na arrecadação do sótão para oferecer penosamente aos amigos e visitas. A pilha nunca mais acaba.
O que a maior parte dos novos escritores muitas vezes despreza é o facto de o livro ter de corresponder a uma fase (ou face) de nós próprios, de ser um bocado de nós. Como se nos oferecêssemos aos outros num parto difícil. Como se tivéssemos de nos transformar em livro. Escrever um livro terá de ser assim uma catarse de um ser que se constrói das ruínas em que se vê. Não é, salvo raros casos, um processo feliz. «Escrever não é um mar de rosas», diz Mário de Carvalho num Guia Prático de Escrita de Ficção, que recentemente publicou. Por isso o dia do lançamento/ apresentação pública, na relativa futilidade da cerimónia, é uma ilha de curta felicidade no processo de (a)parição do livro, provavelmente um dos poucos se reduzirmos a ideia de felicidade à excitação ligeira dos dias.
Deve servir esta reflexão para nos vacinar contra a ambição de ser escritor conceituado? Só cada um poderá responder à pergunta, determinado que esteja a comunicar qualquer coisa ao mundo e medida a autoconsideração e o alcance da nossa mensagem, colocada também a fasquia à altura apropriada. Se só quisermos surpreender ou desafiar, dificilmente seremos reconhecidos, a não ser que tenhamos nome de jornalista ou apresentador de televisão ou ainda de vedeta dos tele-shows da “vida real”. Se for assim, podemos mesmo ter o interior do livro em branco que venderemos. Mais chocante ainda se torna o facto de muita gente querer ser escritor sem ter sido leitor e não dominar portanto um mínimo de convenções e habilidades literárias. Se o livro for na onda do que está na moda, venderá mas morrerá logo a seguir. O livro não pode ser um simples objeto comercial.
O que se exige então a um candidato a escritor de ficção que queira elevar-se a um nível de reconhecimento num dos muitos subgéneros à disposição? Em primeiro lugar o ter que dizer; em seguida o sentir que domina suficientemente a linguagem de forma a ter maleabilidade, imprimindo força à sua expressão; finalmente ter capacidade de trabalho e investigação já que o escritor não vive só de inspiração. Em muitos momentos vai ter de consultar sejam obras históricas ou periódicos de uma época, sejam narrativas bíblicas, seja uma Mitologia Geral ou uma coleção de clássicos. Depois o “ir além” é conseguir o melhor cruzamento entre as centenas de sequências narrativas à nossa disposição encontrando novas combinações. Há escritores que dizem que tudo já está contado mas a ficção é o reino do fazer de conta, da criação de uma ilusão, de uma mentira aceitável. Como se surpreende? Com o inverosímil? Pode ser, mas isso, diz Mário de Carvalho, «tem um custo», pago pela boa qualidade literária. Esta gera a «suspensão da descrença do leitor» e a sua entrega. Só quando o inverosímil se cola à qualidade da linguagem se atinge a síntese aceitável. E assim acontece que uma imaginação de bradar aos céus não produz necessariamente uma grande obra.
Começar por pequenas narrativas antes de nos abalançarmos a um romance de 300 páginas ou mostrar a alguém de confiança a obra supostamente prima que temos para publicar é o mínimo gesto prudente que nos valerá eventualmente a desistência da profissão mas que nos poupará a vergonha de fazer má figura. Se já fez um filho e plantou uma árvore a tríade fica em perigo, na verdade, mas publicar um livro deprimente não é o melhor remédio. Não esqueça: sem ler muito em géneros diversos, não conseguirá escrever nem muito nem bem. E aceite que muito do que escreve terá que ir para a gaveta.
(Mário de Carvalho, “Quem disser o contrário é porque tem razão – Guia Prático de Escrita de Ficção”, Porto Editora, Porto, 2014)
Por: Joaquim Igreja