Arquivo

Pluvioso

1. Como se sabe, o chamado piropo foi criminalizado, tendo sido alterada a redacção do artigo 170° do Código Penal, onde a descrição do tipo legal é alargada à importunação sexual. Assim, «Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal». Esta agravação está prevista no artigo seguinte, caso a vítima seja menor de 14 anos, chegando-se a uma pena até 3 anos. Portanto, ao exibicionismo e ao «apalpão», foi acrescentada a formulação de «propostas de teor sexual». Estou curioso em seguir a aplicação da norma, a sua «densificação jurisprudencial», como diria a saudosa Dra. Assunção Esteves. Incluindo os casos em que os alegadamente importunados são homens, ou mulheres por outras mulheres. Ou seja, como irão os órgãos judiciais lidar com este alargamento do tipo criminal e respectivo quadro sancionatório. Numa matéria que está longe de ser consensual, pelas razões conhecidas. Até hoje, poucas foram as mulheres que encontrei que desgostassem com veemência do piropo. Para muitas, embora não o admitam explicitamente, acredito que o inofensivo piropo é uma espécie de prova de vida. O barómetro do apelo erótico que emanam. Nada que as partes envolvidas, e sobretudo as mulheres, não saibam de há uns milhares de anos a esta parte. O que assusta os puritanos é o paradigma “democrático” do piropo: já que não se pode esconder o que está a vista de todos, celebra-se o que está escondido. Ou seja, a ambiguidade primordial do erotismo, aqui em versão popular. Mas para lá do significado performativo, o piropo é basicamente assunto cívico. Se me disserem que não se devem lançar piropos, da mesma forma que não se devem dar traques em público, ou coçar as partes genitais, ou dar arrotos ruidosos, estou disposto a aceitar. Mas sendo uma questão cívica, deveria ser objecto de auto-regulação social, fora da alçada penal. Uma função que, em circunstâncias normais, cabe às instâncias intermédias da sociedade, com suas representações dominantes e respectivos parâmetros culturais. A preponderância destas instâncias e o comedimento do Estado são sintomas de maioridade democrática. Pelos vistos, neste doce cantinho, ainda lá não chegámos…

2. O episódio passou-se em Novembro de 1968, numa cidade do Norte de Portugal. Marcelo Caetano tinha sido indigitado Presidente do Conselho uns meses antes. E não perdeu tempo em ir ao encontro das populações. Quer na metrópole, quer no Ultramar, como então se dizia. Ora, na tal povoação, e após a passagem da comitiva oficial, uma idosa declarou aos jornalistas algo que fez manchete durante muito tempo: «Este Salazar é mais simpático do que o outro!» Agora imaginemos outra cena. Se, amanhã, o emérito Dr. Costa saísse dos gabinetes e dos salões, fizesse um périplo pelo país real, outra velhinha diria: «Este Sócrates é mais escurinho do que o outro!»…

3. A história dos amores atribulados de Paolo e Francesca, tal como relatada por Dante na “Divina Comédia” (Inferno, Canto V), é dos episódios que mais têm alimentado o imaginário romanesco ao longo de séculos. O enredo é simples. Francesca nasceu em Ravena, governada por seu pai, que estava em guerra com a família Malatesta, de Rimini. Para assegurar as tréguas, forjou-se um casamento entre a bela Francesca e o filho mais velho dos Malatesta, Gianciotto, com má aparência e desajeitado. Por essa razão, enviou o irmão mais novo, Paolo, como seu procurador na cerimónia. Não é difícil prever a paixão que se desenvolveu a partir daí. Os amantes foram um dia surpreendidos por Gianciotto, e sucumbem aos golpes da sua espada. Dante instala as suas almas no inferno, condenando-os a aí permaneceram enlaçados pela eternidade fora. A tragédia tem algumas ressonâncias do “Romeu e Julieta”. Dois jovens de famílias antagónicas do Norte italiano medieval apaixonam-se com consequências funestas. Mas as semelhanças acabam aí. A história dos amantes de Verona é ficcionada, servindo a economia narrativa da dramaturgia shakespeariana. Já com os infortunados amantes de Rimini a história é outra. Até porque Dante se baseia em factos reais da vida das personagens que elegeu para a sua epopeia. E o que ele nos conta? Um pormenor surpreendente e que constitui a pedra de toque deste episódio. Paolo e Francesa apaixonaram-se porque foram seduzidos em simultâneo pela leitura da história de Lancelote e Guinevere. Cujo fascínio quiseram reproduzir nas suas vidas. Ou seja, tomaram a ficção como modelo da realidade. E talvez fosse a inveja e não a luxúria o “pecado” que Dante tenha querido destacar. E para cuja punição tenha criado uma imagem alegórica tão pungente e sugestiva.

4. Cada vez mais grato. Cada vez mais imerso na memória. Cada vez mais desapegado das lembranças. Cada vez mais inacabado. Cada vez mais ágil. Cada vez mais atento ao silêncio. O silêncio que ecoa nos recantos e átrios e bosques e janelas onde sopra a aragem fatal. Ou a monção benfazeja. Um lugar onde se volta sempre. Impossível saber se no meio de um jardim que desafia o próprio paraíso, se embalado pelo harpejo mavioso das asas dos querubins. Cada vez mais grato. Cada vez mais perto.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Leave a Reply