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Pedras vivas

Nunca cheguei a entender se éramos nós, os putos de Santa Clara, na altura Escola General João de Almeida, o “Ciclo”, que o espreitávamos ou se era ele que nos espreitava a nós.

Certinho, certinho como um relógio, no “intervalo grande” da manhã lá estava ele.

Visto do cimo da imponente escadaria da Escola de Santa Clara, antes ciclo, antes Liceu da Guarda, antes Convento de Santa Clara, antes cabeço ventoso na vizinhança da Torre de Menagem do Castelo da Guarda, o personagem era para nós quase uma figura saída da mitologia, era assim uma espécie de centauro moderno, da cintura para cima homem, da cintura para baixo um carrinho de gelados vermelho!

Sempre o conheci assim, sem lhe ver as pernas e velhote, de boina na cabeça, seco de físico e olhar sereno sério e sóbrio.

Nunca o vi chegar ou partir, apenas o vi existir ali, sempre no mesmo sítio, na mesma curva, no intervalo grande da manhã.

No tempo mais quente vendia gelados de siberiana frescura, na mais fresca bolacha americana sempre quente e estaladiça. Há mais de quatro décadas, isto era um avanço repetido em poucos lugares em pleno antigo regime, era assim uma mistura de tio Sam bolchevique.

Nós, os putos proletários com sonhos imperialistas emprestados por dez tostões na algibeira, sem sonhar ainda com abril, mas de olhos postos no carrinho do velhote, sem relógio, mas acicatados por uma espécie de reflexo pavloviano arrebitávamos as orelhas uns minutos antes do toque da campainha e ainda ela não se tinha calado já galgávamos dois a dois os degraus da escadaria na ânsia dessa compra da doce guloseima que nos realizava e fazia guinchar de prazer, donos do mundo pelo preço de dez tostões.

Agora, décadas depois ao olhar para trás com os olhos nostálgicos de quem recorda velhos tempos e bons sabores, vejo novamente o velhote de quem nunca soube o nome ou vi os passos, continua a ser apenas o Homem do Ciclo vendedor de Bolacha Americana. Mas vejo um pouco mais, vejo-o encostado ao lar feminino das “Lurdinhas” e revejo-me, já aluno do Liceu passar diariamente por ele, sempre no mesmo sítio, sempre igual e granítico, como se ali tivesse nascido no empedrado do caminho para continuar a alimentar os sonhos dos “putos do ciclo” que se me seguiram.

O Homem gastou-se ali a alimentar sorrisos, trocou-se por gargalhadas e guinchos esganiçados de criança e um dia… um dia foi-se como chegou, sem ninguém dar conta desapareceu!

O Lar feminino das “Lurdinhas”, em cujas janelas assomava o olhar zombateiro das raparigas que, abanando ao de leve os cortinados para denunciar a presença, gozavam o nosso ar parvo e o audaz e adolescente piropo que mandávamos, também ele desapareceu, substituído por uma necessária e conveniente Residência de Idosos.

Ao velhote do carrinho de gelados vermelho que vendia bolacha americana não sei o que aconteceu, mas sonho que tenha crescido como cresceu o edifício que lhe emprestava a sombra e seja ele que mova agora numa das janelas os cortinados que abanam e sorria ao ver as crianças olhar sem descer do cimo da escadaria, como se vissem algo na curva que não sabem o que é e não existe, mas de que contudo sentem falta.

Acho que a vida se cria e recria à nossa volta e até as paredes que crescem connosco envelhecem connosco e nascem de novo para de novo envelhecer, tornando a vida não num fim, mas num caminho, onde talvez um dia destes num reinício de ciclo o edifício seja creche e o velho das bolachas mais que uma recordação.

Por: Júlio Salvador

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