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O treino

O verdadeiro ambientalista prefere manter o carro com o aspecto de um aterro sanitário a conspurcar a berma de qualquer caminho.

Tomás de Montemor em DN ( 2/2/03 )

Estamos nós, pobres guardenses, a separar afanosamente o lixo, na tentativa de minimizar os efeitos deletérios da civilização sobre o ambiente, ele é cascas de melancia e outros detritos orgânicos para um saco, de preferência biodegradável, metais e plástico para um lado, papel e cartão para outro, pilhas à parte, medicamentos para a bolsa da farmácia, radiografias para entregar em Fevereiro à AMI, as cozinhas cheias de recipientes de várias cores, para não haver confusões, as crianças felizes porque estarem finalmente a ver fazer o que lhes ensinaram na escola, ele é berros aos adolescentes que já passaram a fase ecológica e na pressa de sair para a discoteca misturam as folhas de alface, que deixaram intactas no prato, com os maços de tabaco sem separar a prata da caixa de cartolina e esta do celofane, ele é conflitos com os avós que não se adaptam a estas modernices consumidoras de tempo e energia, ele é chamadas de atenção à empregada que não distingue o papel de jornal da capa plastificada da revista, ele é discussões intermináveis no seio do casal para decidir qual a verdadeira natureza do papel vegetal e se, em função daquela, este deve ir para o plasticão ou para o papelão e, afinal, ficamos a saber que tudo isto é… teatro.

Bolas!

Ao fim e ao cabo, é o que se diz, vai tudo parar ao mesmo monte, algures para o lado do novo cemitério.

Será boato? Será verdade? A vida não reza assim.

Não é teatro, são treinos, dirão alguns responsáveis camarários: o objectivo é habituar as pessoas, engrená-las nestes procedimentos, educar pela acção.

Ora bolas para os treinos, meus senhores!

Pessoalmente já ando a treinar há muito tempo. Depois de vir para a Guarda cheguei a juntar em casa vários sacos de 50 L de papel (infelizmente, por razões profissionais, recebo muita propaganda endereçada, que não posso recusar) e quando telefonei para a Câmara, em 1995, para saber onde havia de o entregar, disseram-me que não havia quem o recolhesse. Algum seguiu para Oeiras ou para Coimbra, sempre que havia um portador sensibilizado para a questão. A maior parte foi para o contentor.

Deixei-me de lirismos até que apareceram, na cidade, os papelões e, posteriormente, os ecopontos. É desta, pensámos. Tenho amigas espanholas que todos os meses levavam carregamentos de plástico para Salamanca e que passaram a metê-lo, confiadamente, nos plasticões da cidade mais alta de Portugal.

Afinal, para quê?

Razão tinha um ex-amigo meu, bêbado e esquizofrénico, ou vice-versa, que como todos os esquizofrénicos e/ou bêbados, tinha por vezes impagáveis momentos de lucidez: Que se lixe! (pronuncia-se licse), dizia ele, quando as coisas lhe corriam mal, o que era uma constante.

Por: Maria Massena

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