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O que Miró desvendou

Opinião – Ovo de Colombo

Já muito se pensou e se disse sobre a polémica gerada em torno da colocação em venda na leiloeira Christie’s das obras de Joan Miró, sob custódia do Estado devido à nacionalização do BPN. A origem da novela, que conseguiu a proeza de pôr o país a falar de arte moderna, parece remontar ainda ao período do governo anterior, mas teve a pertinência de destapar alguns problemas estruturais e conjunturais do setor cultural e de muitas “trapalhadas” a que os agentes do mesmo setor infelizmente já se habituaram. Parece que as decisões em torno do conjunto do artista catalão são algo estranhas: o total desconhecimento da Ministra da Cultura e do Ministro das Finanças em funções em 2008, sobre o suposto interesse em vender o espólio; a ausência de debate sobre as alternativas à venda e a “consulta” tardia da Direção-Geral do Património Cultural; a inexistência de uma avaliação rigorosa antes de assumir a venda; o incumprimento da Lei de Bases do Património Cultural para a saída de bens nacionais do território português.

Compreendo a necessidade de recuperar dinheiro que o Estado utilizou no BPN e até sou a favor da venda das obras de Miró, se parte do montante arrecadado fosse investido na cultura, por exemplo em projetos de restauro do nosso património arquitetónico. Mas não aceito o procedimento tomado nem a ausência de reflexão séria sobre o assunto. A meu ver, o mais sensato seria ficar com algumas das mais representativas obras e vender a grande maioria. Não necessitamos 85 trabalhos de Miró! Não estamos a falar de um artista incontornável como Duchamp ou Picasso. Conseguiríamos uma boa verba, numa venda menos apressada e mais bem fundamentada sem coincidir com a época de saldos, e conservaríamos as melhores obras para uma coleção nacional. Claro está mais outra incerteza: que coleção? A da Caixa Geral de Depósitos? Ou transitariam para o Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC), o Museu do Chiado, com todos os problemas de falta de espaço (e de identidade) que tenta superar? Imagino que alguns lançariam a impetuosa ideia de, a reboque do “caso Miró”, construir um novo polo museológico dedicado à arte moderna e contemporânea. Não vou discutir a urgente necessidade de repensar a missão, os objetivos e o modo de suprir as diversas carências do MNAC, cuja direção foi recentemente bem entregue a David Santos. Não são questões novas mas que precisam urgentemente de soluções novas, quiçá facilitadas pela clarividência de pessoas novas – como o novo diretor-geral do Património Cultural, Nuno Vassallo e Silva, que já assistiu à assinatura do protocolo para ampliação do MNAC para os espaços contíguos do antigo Governo Civil e da PSP, mesmo ao lado do Teatro Nacional de São Carlos.

Quem fica muito mal na fotografia deste álbum dedicado a Joan Miró é mesmo o Estado, que assim perdeu qualquer legitimidade para exigir da sociedade civil a observância do regime de proteção do património cultural. O incumprimento de prazos, a impossibilidade de classificação apesar dos pareceres, o atropelo da lei e das boas práticas por aquele que deveria ser o guardião supremo e exemplo sem mácula são, no mínimo, surrealistas.

Tânia Saraiva*

* Historiadora e crítica de arte; professora universitária

Joan Miró, Mulher, pássaro e estrela (Homenagem a Picasso), 1966-1973

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