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O Ovo de Colombo

Quebra-Cabeças

A Dona Maria de Jesus tem um problema grave de relacionamento com o senhorio. Ele entende que ela, com a miserável renda que lhe paga, hoje fixada em 35 euros por mês, lhe está a impedir o gozo da herança que lhe deixaram os pais. Ela acha que a casa precisa de obras e que é o senhorio que tem de as pagar, que a sua reforma de 200 euros mal chega para os medicamentos. No Inverno os alguidares espalham-se pela casa como cogumelos e não conseguem dar vazão à água que entra pelos inúmeros buracos do telhado. As humidades vão roendo o estuque e a saúde da Dona Maria de Jesus. O senhorio, à falta de melhor solução para o caso, espera que ela morra. Não tem é dinheiro para fazer obras. Mas tem um plano.

A actual maioria no governo acaba de alterar a lei do apoio judiciário. Aquela que garantia que por falta de meios económicos ninguém se veria excluído do acesso à justiça. O pretexto para a alteração foi a transposição para o direito português da directiva do Conselho 2003/8/CE, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços. Acontece que se foi muito mais longe do que isso. Os primeiros estudos e projecções mostram que, com o novo regime, a esmagadora maioria dos actuais beneficiário do apoio judiciário não o obteriam se o requeressem agora. Considera-se, com a nova lei, que alguém tem capacidade para suportar os custos de uma acção judicial, embora lhe seja admitido que os pague em prestações, se tem um rendimento mensal entre metade e o dobro do salário mínimo nacional. Leram bem: a partir de metade do salário mínimo nacional já não há apoio judiciário na modalidade de isenção total de custas. Quando li a nova lei, ainda pensei que a ideia fosse o rendimento disponível após pagamento de despesas corrente, mas não é nada disso e a prática recente da Segurança Social vem confirmar esta interpretação: o que conta é o rendimento bruto.

Significa isto, regressando ao caso da Dona Maria de Jesus, que se o seu senhorio lhe mover uma acção de despejo, ainda que totalmente infundada, ela, que vive no limiar da miséria, não vai ter qualquer possibilidade de se defender. Como ela, milhares de trabalhadores ilegalmente despedidos ou com créditos salariais sobre os seus patrões vão ter de esquecer os seus direitos por incapacidade económica para os fazer valer em tribunal.

A ideia, na perspectiva do actual governo, é genial. Com uma cajadada matam-se todos os coelhos: diminui-se a pendência de processos em Tribunal, corrigem-se, embora indirectamente, alguns constrangimentos do Regime do Arrendamento Urbano e do Código do Trabalho, diminuem-se as despesas e aumenta-se a receita. Vão vê-los a gabar-se, daqui a uns tempos, da diminuição da conflitualidade e de terem resolvido os problemas da Justiça em Portugal.

Por: António Ferreira

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