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O meu nome é Mickäel

Opinião – Ovo de Colombo

Laure: é assim que a mãe a chama, mas para os amigos trata-se de Mickäel. A criança, franzina e de trejeitos simples apresenta-se e integra-se no novo bairro como rapaz. É assim que ela quer ser vista e, mais importante do que isso, se vê aos olhos do mundo. Mas Laure é, também para espetador, Mickäel. Isto caso não se saiba, à partida, o assunto central de “Maria-Rapaz” (2011).

Sim, demoramos a perceber que o rapaz envergonhado esconde (e esconde-se), na verdade, um corpo de rapariga. A revelação é dada de forma crua, despertando-nos para uma questão fraturante: a identidade de uma pessoa vai para além do seu corpo. No entanto, como recebemos essa inevitabilidade quando se trata de uma criança? Teremos a capacidade de, enquanto sociedade, respeitar a sua decisão?

Está implícito que Mickäel é um rapaz transgénero. A criança gere a sua verdade de forma simples, até natural, enquadrando-se na visão que idealiza para si. No entanto, as mentiras que vai criando mostram-nos que Mickäel tem noção que o meio envolvente ainda não está preparado para o receber tal como é. Mas, afinal, quem somos nós para definir ou limitar a realidade de outra pessoa? Para trocar a roupa “arrapazada” de Mickäel por um vestido? Quem somos nós, enquanto espetadores, mas também enquanto cidadãos, para dizer a uma criança que não pode ser o que ela quiser? São muitas as perguntas que surgem em catadupa ao longo do filme. Que nos incomodam e que nunca se acomodam, como que roçando uma ferida que julgámos “sarada”.

A realizadora Céline Sciamma é sublime, como é sublime a história que cria e que ganha vida nas relações de Mickäel. A irmã mais nova do protagonista é a que mais gosta do rapaz, pois, na sua inocência, aceita-o sem questionar. Mas passamos “Maria-Rapaz” (2011) em sobressalto: será a sociedade do filme capaz de apoiar Laure? De dar espaço a Mickäel? Os pais, que aceitam a forma como Laure se quer vestir, serão capazes de permitir o que essa escolha representa?

É um tema sensível, bem sabemos. A questão do género não é entendida de forma consensual pela sociedade – cada um de nós terá uma forma de “lidar” com o assunto. O corpo, propriedade de quem nele habita, é muitas vezes julgado e espezinhado em praça pública. O que deveria ser um “templo” particular é constantemente invadido e agredido pelo “outro”, essa figura exterior que dita verdades universais que, no fundo, não são mais que falsas “regras” estabelecidas socialmente. E é esse olhar que o cinema julga, pela lente de Céline, despindo as roupas de Mickäel para nos descartar.

Com @Última Sessão: fb.com/ultimasessao.cinema

Sara Quelhas*

*Mestre em Estudos Fílmicos e da Imagem pela Universidade de Coimbra

Sobre o autor

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