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O fogo contraria o esquecimento

Os espaços silvestres constituem 64% da totalidade do solo português, segundo as estatísticas de uso do solo em Portugal, com predomínio de áreas florestais e incultos. A política da Administração baseia-se na conservação dos espaços silvestres, considerados como naturais, e por isso a manter fora da esfera de intervenção do Homem, ficando entregues a uma regeneração natural bruta, não obstante se encontrarem em processo de degradação e/ou esgotamento.

Por outro lado, os solos classificados como Reserva Ecológica Nacional (REN), cerca de 50% do território, são claramente interditados a qualquer relacionamento com a população residente, impedindo a apropriação do espaço pela sociedade, o que contribuem também para o processo de abandono. Curiosamente, os cerca de 7,5% classificados como áreas protegidas de “parques e reservas”, são colocadas à margem da REN, apesar de serem os únicos comprovados como ecossistemas de claro interesse científico. Donde se conclui que, a criação da REN não visou proteger ecossistemas únicos, porque não existiu uma análise profunda desses ecossistemas, baseou-se sim, na proibição de “acções que diminuam ou destruam as funções e potencialidades” de metade do solo português, as quais não são especificadas pela Administração. Para além da proibição de construir, que em muitos casos poderia aproximar os interessados na manutenção e exploração desses ecossistemas, a proibição de destruição do coberto vegetal em áreas de REN, impede inclusivamente os proprietários de procederem à limpeza selectiva dos matos… que vemos arder todos os Verões. A lei pressupõe, assim, que os proprietários actuam, naturalmente, de forma nociva sobre os seus próprios terrenos, o que resulta no alheamento justificado desses proprietários, relativamente ao solo congelado pela Administração.

Mas também os parques naturais continuam a ser encarados numa perspectiva de proibicionismo e abandono forçado, como forma de conservação, ausentados de qualquer processo de intervenção/ transformação que vise uma exploração contínua e sustentável dos seus recursos.

A Administração congelou assim o desenvolvimento, e também a possibilidade de cuidar de grande parte do solo que administra. Muitos das áreas ardidas ao longo dos anos, eram e continuam a ser, espaços votados ao abandono. Perante uma Administração estática e redutora parece-me bastante pertinente a análise de Henrique Pereira dos Santos, arquitecto paisagista, publicada num artigo do Jornal Público, a 8 de Agosto deste ano, onde afirma, justificando: “Os fogos a que assistimos são a face mais visível da recuperação dos nossos ecossistemas, muito mais que um facto determinante da sua degradação”

Defendem os especialistas em planeamento territorial que o Homem deve intervir nestes ecossistemas, quer para os explorar economicamente, quer para recuperar o coberto arbóreo, a qualidade do solo ou a diversidade cinegética, ou construir paisagens notáveis. Defendem que todo o território necessita de assistência, vigilância e tratamento permanentes com um sentido social claro.

É absurdo pensar que não existe qualquer uso compatível com o uso do solo silvestre, a partir do qual todos os outros de diferenciaram. É necessário encarar esta problemática de forma madura e conscienciosa, e sobretudo numa perspectiva de continuidade, necessária a qualquer processo de programação do sector florestal. A sociedade actual não pode dar lugar a espaços de abandono…de degradação. A administração deverá ser capaz de envolver a população, no processo de transformação do território, respeitando o direito das pessoas participarem na construção do mundo, por intermédio da discussão e argumentação. Por outro lado, assumir a proibição como forma de gestão, para além de implicar acarretar com todas as responsabilidades da ausência de intervenção, cria um distanciamento insustentável entre as pessoas e o seu espaço de vivência.

Os incêndios trazem à luz toda esta problemática. Mostram um território esquecido e abandonado, que o fogo nos recorda existir.

Por: Cláudia Quelhas

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