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O calor

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O calor pega-se, torna o corpo autocolante, faz das mãos uns rios profusos, desaconchega na cama. O calor devia aproximar as pessoas que, despidas, se trespassam, mas muito calor faz suor em bica e a gente afasta-se. O calor desidrata os velhos que, por essa razão, invadem os hospitais obstipados, com tromboses, hipertensos, de diabetes aos saltos, arfando, cheios de desespero. O calor é toda esta desgraça e é saias curtas, maminhas despontando, muitos calções, rapazolas de corpo atlético, e é brisa de mar e é galanteio e praia. O calor é, pois, como todas as coisas – bom e mau, doce e amargo, belo e feio – e esta dicotomia torna a vida demasiado simples e em simultâneo complexa.

O Karl Marx e a sua dialéctica de ricos e pobres, bons e maus, era um tropicalista. Com Marx os calores eram dúbios e os comportamentos sociais também. O mundo teve gente que, como o calor, derretia os nossos destinos, e viveu uma época ideológica que me parece morta e com ela a barbárie dos fanatismos e dos tipos convictos. Não sei se isto é verdade em todo o lado, mas a Europa de Bruxelas é um espaço de não convictos, de agnósticos, de não políticos, de centros comerciais com ar condicionado. O calor mais tórrido da Europa foi o das guerras no século passado e matou milhões de pessoas. Era o calor de dentro, o que nos consome o pensamento com ideias abomináveis. Eu gosto do tempo quente e das pessoas quentes, mas deste calor que humidifica a pele, que transpira o sexo, que por descuido mata os idosos. A convicção e os calores que imana, esses sim, entristecem.

Por: Diogo Cabrita

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