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O amor, a pior das maldições

O Jarmelo foi um dos palcos da trágica história de amor de D. Pedro e D. Inês

É logo ali ao lado de quem passa, naturalmente apressado, na A25, depois da Guarda e no sentido de Vilar Formoso. Há um cabeço que se destaca de todo o planalto. São as terras do Jarmelo e têm tanto de históricas como de lendárias. Terras de maldição e, afinal, terras de amor.

Por aqui passaram D. Pedro e Inês. E os resquícios da mais bela e trágica história de amor da nação. Uma espécie de Romeu e Julieta à portuguesa, pois então. Ou, pelo menos, com um final igualmente trágico. O Jarmelo, terra orgulhosamente beirã, aparece ligada, irremediavelmente, a essa tragédia. É que foi aqui que nasceu, por má sina e infortúnio, Pêro Coelho, um dos executores da “bela com o corço de garça”. Por isso, e em jeito de vingança desesperada, D. Pedro mandou salgar as suas terras, num gesto decisivo de maldição e extermínio, mal subiu ao trono. Pouco depois de murmurar as históricas palavras: “Adeus Vila do Jarmelo/Adeus pedra de montar/ Enquanto o mundo for mundo/Tributo hás-de pagar”. Reza a história que, por causa dos amores e dissabores do infante, a vila sofreu uma atrocidade que ficaria para sempre visível. D. Pedro determinou que no Jarmelo não ficasse pedra sobre pedra – salgando-se os terrenos. Os habitantes foram empurrados para as terras vizinhas.

Mais tarde, o Jarmelo foi reconstruído, é certo. E repovoado pelo seu filho, D. Fernando. A terra outrora amaldiçoada prosperou e foi, inclusive, sede de concelho. Durante a quarta invasão napoleónica foi assaltada. Enfraquecidos, os habitantes enjeitaram-na e nunca mais se recompôs.

Centremo-nos, no entanto, na famosa história de amor. Há até quem diga que foi no Jarmelo que D. Pedro conheceu D. Inês, quando integrava um cortejo de D. Constança, que casou com o rei, vindo de Espanha. «Mas não há nada oficial», adverte Agostinho da Silva, presidente da Junta de S. Pedro do Jarmelo. «A versão oficial, essa, conta-a Camões», recorda. Mas estórias há muitas. O autarca recorda que «até há quem conte que foi feito um casamento na região da Guarda, por um padre da Sé». Conta-se que o rei, encolerizado e inclemente, expulsou D. Inês para o Jarmelo. Desse tempo é a famosa “pedra de montar”, que lhe servia de apoio quando pretendia subir ao cavalo. A pedra ainda lá está, escondida entre carvalhos, nos arredores do “pinoco” (o marco geodésico). Mas não no sítio original. «Foi removida há 60 anos e colocada no actual local», continua Agostinho da Silva. Foi também por causa de D. Inês que perdurou ao longo dos séculos a tradição das noivas pagarem uma tença ao casarem. Como que à memória “daquela que depois de morta foi rainha”. No Jarmelo, existem as tradicionais “alminhas”, mas aqui adquirem um significado especial. «Há quem lá ponha dinheiro e flores campestres para as moçoilas arranjarem casamento», garante o autarca.

O assassino

Pêro Coelho foi conselheiro de Afonso IV e um dos responsáveis morais pelo assassinato de Inês de Castro, amante do então infante real D. Pedro, futuro monarca – D. Pedro I. Era descendente de um lendário espadeiro, Lourenço Viegas e de Egas Moniz e filho de Estevão Coelho e D. Maria Mendes Petite (que viria a ser avó de D. Eleonora d’Álvini, esposa do “Santo Condestável” D. Nuno Álvares Pereira). Imensamente ricos, os pais deram a Pêro Coelho uma educação esmerada. E ele próprio seguiu as pegadas dos progenitores. Conservou-se bastante abastado, dono de muitas propriedades na região duriense e no Tâmega. Aos seus pais pertencia o melhor palácio da vila do Jarmelo no princípio do século XIV.

Quis a política do tempo que três fidalgos, um dos quais Pêro Coelho, invocando razões de interesse para a grei e para o rei, aconselhassem e praticassem o assassinato de Inês de Castro na Quinta das Lágrimas (como hoje se chama), em Coimbra, a 7 de Janeiro de 1355. Dois anos depois, em 1357, foram justiçados, bem mais cruelmente, dois dos assassinos. A Pêro Coelho foi-lhe arrancado o coração pelo peito. Ao outro pelas costas. D. Pedro mandou que lhe trouxessem os corações numa escudela, para o jantar. Despiram Pêro Coelho e Gonçalves, pondo-os nus da cintura para cima. Antes de expirar, reza a lenda que terá dito: «Vilão, procura bem que hás-de encontrar aqui dentro um coração forte como o de um toiro e leal como o de um cavalo».

Fruto ou não da maldição, a verdade é que o Jarmelo de hoje nem sequer é um povoado. Ninguém habita as suas casas totalmente desmoronadas, dispersas no alto de uma colina abrupta e pedregosa. Testemunho da grande solidão das Beiras.

Sinais de desinvestimento?

Apesar de uma das mais épicas e importantes histórias de amor passar pelo Jarmelo, num misto de desespero e maldição apaixonados, a verdade é que nem por isso tem sido feito investimento para realçar a nobreza da história. «Um ano depois do ano inesiano edificámos uma escultura única a nível nacional e com um orçamento baixo», recorda Agostinho da Silva. A escultura em ferro lá está, recriando, em proporções gigantescas, o quadro intitulado “O assassínio de Inês de Castro” pintado no início do século XX por Columbano Bordalo Pinheiro, cuja execução esteve a cargo de Rui Miragaia, natural da freguesia.

A obra, muito bela, é constituída por sete peças figurativas, representando o rei D. Afonso IV, Inês de Castro com os seus dois filhos e os conselheiros do monarca: Pêro Coelho, Diogo Lopes Pacheco e Álvaro Gonçalves. A inauguração desta peça ocorreu em 2006, para assinalar o 650º aniversário do crime. «Tentámos potenciar a ligação da morte de Inês de Castro ao Jarmelo por essa altura», admite o autarca. Mas sem frutos. «O que pudemos fazer, fizemo-lo com um orçamento baixíssimo. Mas houve dinheiro para as comemorações do ano inesiano. Para onde foi o orçamento?», interroga. «O que é certo é que o poder local poderia e deveria interessar-se mais», considera. É por estas e por outras que o autarca não voltará a recandidatar-se à Junta. Ficou conhecido por intervenções divertidas e originais como adoptar uma vaca jarmelista ou oferecer, na Assembleia Municipal, um kit para moradores no Jarmelo.

Garante que foi «por amor à terra» que se aventurou pelas lides políticas. No entanto, feito o balanço, foi precisamente esse amor que acabou por ditar o seu afastamento, considerando que a paixão «é a pior forma de gostar das coisas». «Por vezes, andamos aqui em lutas que não são abraçadas por toda a gente», lamenta. No rescaldo, assume-se «completamente desiludido» com o apoio que as freguesias têm tido e as expectativas que tinha e não se realizaram. «Quem não tinha água e saneamento continua a não ter», exemplifica. «São condições básicas para as pessoas viverem que, não estando realizadas, tornam-se insustentáveis», critica. Intrinsecamente ligados à história de D. Pedro e Inês de Castro é possível visitar, no Jarmelo, a Quinta do Silva (onde se diz que habitou o assassino), a casa dos pais de Pêro Coelho no castro ou uma fonte que ganhou o nome da aia.

Rosa Ramos

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