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O hospital dos afectos

Em Moimenta da Serra há uma casa que serve de abrigo a mulheres e crianças vítimas de violência

Maria tem só 24 anos, mas num primeiro contacto parece logo ter muitos mais. Está na Comunidade de Inserção de Moimenta da Serra (Gouveia) desde Junho do ano passado e confessa-se reincidente. Já passou por outro abrigo do género, mas «perdoou» ao marido e voltou para casa. Até voltar a ser institucionalizada. «Foi sol de pouca dura», conta.

Maria casou-se aos 16 anos e já tem quatro filhos. Inês, a mais nova, tem apenas oito dias e, para além de ser a menina dos olhos da mãe, é também a bebé mais jovem do Centro de Acolhimento Temporário para Crianças Abandonadas da Fundação D. Laura dos Santos. As duas valências funcionam lado a lado e fazem parte do projecto “Mãos Abertas” que a instituição tem em funcionamento desde Março de 2007. Aqui, a violência é transversal a todas as histórias. Actualmente, neste verdadeiro “hospital dos afectos” são acolhidas 12 mulheres e 20 crianças, o que significa lotação esgotada no maior investimento levado a cabo pela Fundação de Moimenta da Serra – custou cerca de 1,5 milhões de euros. Recuperar psicologicamente e preparar uma posterior integração social e profissional é o objectivo maior do projecto. Aqui definem-se projectos de vida. No caso dos «meninos» – é assim que são chamados dentro de portas –, um dos destinos possíveis é a adopção. E o último mês até correu bem, já que foram adoptadas quatro crianças.

Quanto às mães, são integradas na vida da instituição – é comum encontrá-las na cozinha antes da hora do jantar a preparar as refeições ou a cuidar das crianças – e participam em actividades de formação profissional. Uma equipa de técnicos das mais variadas áreas empenha-se em garantir o sucesso da sua institucionalização. Mas o mais importante, garante Rui Reis, presidente do Conselho de Administração da Fundação há 11 anos, é criar laços de conforto emocional e partilha. «Estamos a falar de anos a fio de agressões e maus-tratos, por isso, há que fazê-las acreditar nelas próprias e devolver-lhes a esperança de que podem ter uma vida diferente. Isso só acontece se nos envolvermos nas suas histórias, nas suas vidas», garante. Desde 2007, o Centro de Acolhimento Temporário já recebeu 45 crianças, tendo passado pela Comunidade de Inserção 31 mulheres. Muitas delas chegaram à pequena aldeia da Serra da Estrela sob escolta policial. A segurança é, aliás, um pormenor que não pode ser descurado nestes casos.

Escola da aldeia já não chega para tantas crianças

Até porque já houve episódios «difíceis», apesar do ainda pequeno historial da instituição. Rui Reis recorda que, no período de pós-agressão, a maioria dos agressores tentam abordar as vítimas com promessas de mudança. É a fase a que os especialistas chamam de “lua-de-mel”. Além destas abordagens «comuns», já houve outros casos em que os maridos sabem do paradeiro dos filhos e «tentam ir buscá-los à escola», refere.

É que as crianças e as mulheres são inseridas na vida escolar e social da freguesia. Rui Reis, que também preside à Junta, garante que nunca houve «hostilização». Muito pelo contrário. A integração tem sido de tal ordem que duas mulheres acabaram por fixar-se na aldeia findo o período de institucionalização – que não deve demorar mais de 18 meses. Também por causa do projecto “Mãos Abertas”, Moimenta da Serra tem conhecido um fenómeno “sui generis”. Há sete anos existiam cinco crianças no jardim-de-infância, hoje são 40. No primeiro ciclo o número aumentou de 15 para 60. O crescimento é de tal ordem que, na freguesia, a escola já não vai fechar, à semelhança do que acontece em muitas das aldeias do interior. Está até prevista a construção de um centro educativo, «porque o actual edifício já não comporta tantas crianças», adianta Rui Reis, que justifica boa parte deste crescimento com a abertura da Unidade de Apoio à Infância da Fundação, que tem atraído crianças de freguesias vizinhas. O sucesso é de tal ordem que Moimenta da Serra já tem mais crianças no jardim-de-infância «do que a sede de concelho», assegura o responsável.

Fundação debate crianças em risco

A Fundação D. Laura dos Santos, de Moimenta da Serra, vai promover, na quarta-feira, o seminário “À espera de uma decisão – Percursos, perspectivas e reflexões sobre a protecção de crianças e jovens em risco”. O encontro começa às 10 da manhã no Teatro-Cine de Gouveia e conta com a participação da secretária de Estado Adjunta e da Reabilitação, Idália Moniz, e do presidente do município, Álvaro Amaro, na sessão de abertura, para além de José Pires Veiga, director do Centro Distrital da Segurança Social da Guarda (CDSSG) e Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens. O primeiro painel inclui as intervenções de Cristina Viegas, da equipa de adopção do CDSSG e de Rui do Carmo, do Procurador da República do Tribunal de Família e Menores de Coimbra. Pelas 11h30, Cláudia Peixoto, advogada do projecto “Mãos Abertas”, Luis Villas Boas, do Refúgio Aboim Ascenção e Maria Joaquina Madeira, provedora da Casa Pia, participam no encontro. Dora Pereira, coordenadora da instituição “Chão dos meninos” de Évora, Margarida Pinto Correia, da Fundação do Gil e José Amaro, do Instituto da Segurança Social de Lisboa são outros dos convidados, bem como João Paulo Delgado, investigador do Centro de Estudos da Criança da Universidade do Minho e Eliana Gersão, investigadora do Centro de Direito Comparado da Universidade de Coimbra que irá apresentar o projecto “Apadrinhamento”, pioneiro a nível nacional e que possibilita o acolhimento, em famílias, de crianças institucionalizadas.

Rosa Ramos

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