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Nova Orleães e o luto (parte IV)

“…e por momentos o mundo é este salão, este salão escuro, jazzy, terrível; as batidas do nosso coração são as do pé de Shotgun; todos os momentos alegres da nossa vida se concentram no brilho malicioso dos seus olhos. Eu quero uma matrona grandalhona cheia de carnes roliças, sim! ”

Truman Capote em “Os cães ladram”

As pessoas faziam fila à porta da catedral.

Não era o mesmo tipo de pessoas que tinha estado no dia anterior no 544 Club.

Não estavam lá os negros, nem os velhinhos japoneses reformados, armados com as incontornáveis máquinas fotográficas de último modelo, que tinham entrado coxeando, acompanhados por dois jovens guias (ou assistentes ocupacionais?), no preciso momento em que Willy Cockett (era esse o nome do homem da voz rouca) com a sua imensa figura e os olhos negros cintilantes, chapéu de coco na mão, se inclinava para a assistência cantando “Do you wanna make love at the front seat of my car?*”. Costuma ser no banco de trás, pensei eu, mas como aqui tudo é diferente…

A canção era dolente e bela, de uma sensualidade gritante e ao mesmo tempo triste. As brancas loiras e sem curvas saltaram para a pista. Dançavam frenéticas e sozinhas. Não, não era aquilo que se esperava delas, pensei eu. Isto não é para se dançar assim. Quando não se conhece um ambiente vale mais ficar quieto e atento num canto, a observar, a absorver, a tentar compreender, do que entrar de chancas para o centro do círculo. Foi o que fizeram inteligentemente os japoneses. Deixaram-se ficar sentados, de copo na mão, nas suas cadeirinhas, sorrindo. Dentro em pouco estavam todos a ser convidados para dançar. As senhoras volteavam, delicadamente conduzidas por mãos hábeis, e os senhores marcavam o ritmo com as bengalas.

“Go to the West, go to the East, go to the place you like more”**. A canção do carro tinha acabado. Eu e a minha filha sobrevivemos entrelaçando as mãos de forma sugestiva e declinando delicadamente os convites. Ela estava noutra e eu, bom… não havia ali ninguém com quem me apetecesse especialmente “esfregar”, que era o que aquela canção exigia.

Na catedral as coisas eram diferentes. Ou não se tratasse de um local de culto.

As pessoas iam entrando à medida que havia lugar. Os primeiros sentavam-se nas poucas cadeiras que havia. Os outros ficavam de pé ou acomodavam-se no chão.

Há nossa frente estava um piano com mais de 200 anos, praticamente sem lados, nem frente, nem costas. Mas tinha o essencial num piano, ou seja, as teclas e as cordas. Apoiados em cadeiras, tão velhas e estafadas como as da assistência, estavam os metais e o contrabaixo.

Atrás de nós um senhor murmurava comovido: “Está tudo como há 18 anos. Acho que até as teias de aranha são as mesmas.”

Os músicos entraram, sentaram-se e olharam a assistência com ar impávido, para não dizer hostil. “Porque é que eles estão com aquela cara?” perguntou a minha filha. “Chiu!”, ordenou o do saxofone, que parecia ser o chefe. Pensei que ia dizer a seguir: “Silêncio, senhores, que se vai cantar o fado”. Em vez disso começaram a tocar.

Ficámos para… três espectáculos. Pedimos, e pagámos, claro, para ouvir o “Closer Walk with Thee”. Cinco notas de 1 dólar, num molho, para dentro do inevitável chapéu de coco. Como os dólares são todos da mesma cor ninguém percebe se estamos a dar muito ou pouco. “Temos alguns pedidos especiais, senhores. Hoje, parece que toda a gente quer blues. Bom, pagaram. Por isso vão ouvir.” E assim ouvimos o mais famoso hino funerário de N.O.

No fim, a minha filha foi perguntar-lhes porque estavam com um ar tão aborrecido.”Aborrecidos, nós?” replicaram-lhe. E viraram-lhe as costas.

O homem das teias de aranha explicou: “Eles são os melhores. E são muito mal pagos. Tocam aqui há anos, todos os dias. Só quando um morre ou adoece é que vão buscar outro, igualmente exímio, mas igualmente mal pago. Provavelmente nunca saíram de N.O.”

Era o Preservation Hall.

* Queres fazer amor no banco da frente do meu carro?

** Vai para Oeste, vai para Leste, vai para onde te sentires melhor

Por: Maria Massena

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