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Noites

Corta!

A noite é um lugar perigoso. De encantos e desencantos fáceis. Um tempo de sonhos, esteja-se ou não a dormir. Um período de fantasmas escondidos a cada esquina. A noite foi feita para dormir, dirão alguns. A noite foi feita para se poder viver a dobrar, gritarão outros. A noite, diga-se o que disser, é um mistério.

Enquanto os coiotes patrulham as ruas, um assassino profissional, samurai urbano, metalizado e estilizado, aluga os serviços de um taxista sonhador. Filmando a noite como nunca antes, Michael Mann recorre, em Colateral, ao digital de alta definição para melhor transmitir as sombras e brilhos presentes nas luminosas noites de Los Angeles. Falsos dias iluminados a néon com a Lua em fundo. Cinco mortes numa noite, a fazer lembrar um qualquer jogo de computador. Se Hitchcock fosse vivo não rejeitaria este argumento, que acabou, ainda assim, por cair em (muito) boas mãos. Se Heat – Cidade Sob Pressão não foi bem aquilo que prometia ser, The Insider – O Informador revelou ao mundo um realizador a quem o mundo deveria prestar atenção, que Ali manteve em suspenso e agora Colateral volta a colocar no centro, revelando-se um fabuloso thriller a que algumas fragilidades no argumento não chegam para tornar menos emocionante. Este é um regresso de Mann ao universo que criou em Miami Vice, onde o Sol que acalentava a fina areia de paradisíacas praias é trocado pela fria Lua que abraça por breves longas horas as frustrações de cada um.

Mas a noite é diferente para todos. As noites. Várias. Para cada um. Actor principal no seu sonho nocturno. Em cada um uma diferente noite, num diferente palco.

Longe da cidade mágica, dos anjos e da construção de sonhos, com uma população de 17 milhões de habitantes, a noite cobre também as vidas de outras pessoas. Pessoas colocadas à margem, num Portugal profundo. Um universo repleto de gente que tanta atracção exerce sobre João Canijo, o responsável pela mais recente estreia do cinema português, com Noite Escura.

Quase todo ele filmado no interior de uma casa de alterne, o último filme do realizador de Sapatos Pretos e Ganhar a Vida, com uma força já habitual nalgum cinema português, mas com uma acutilância menos usual, é um verdadeiro murro no estômago naqueles que nada mais fazem para além de criticar o cinema feito em Portugal, sem, muitas das vezes, lhe dedicarem um minuto que seja para se inteirarem se está ele assim tão mau. Sem ser o D. Sebastião do cinema nacional, pelo qual alguns ainda aguardam, Noite Escura tem valor mais que suficiente para justificar uma ida ao cinema, mesmo para os mais descrentes, e conta com a melhor interpretação do ano, e não apenas num filme português, a cargo de Beatriz Batarda, sem dúvida o mais seguro valor do panorama de actores portugueses.

As paixões aparecem mais visíveis no escuro da noite, com as obsessões por damas de honor. No escuro do espaço de tempo que divide os dias é impossível fugir ao amor, que nesse enorme espaço brilhante que separa as noites mais facilmente é esquecido.

E de obsessões falem com Wong Kar-Wai. Toda a sua obra gira em torno de tal tema, a que 2046 não foge. Antes pelo contrário. Os labirintos intensificam-se, abrem novos caminhos, que apenas levam a mais saídas sem fim. Obra maldita que tantos anos levou a terminar, 2046 chega com o sabor amargo de um filho de parto complicado. A organização das ideias nunca surgiu tão vincadamente perdida. Reflexo de personagens a viver paixões sem fim à vista, por culpa de não existir um início que sirva para que algo (de facto) comece. A adoração anterior, no entanto, dá aqui, pela primeira vez, lugar a um mal-estar que apenas é aliviado com o final do filme. Ainda assim, há paixões que não acabam jamais, por maiores desilusões que aconteçam.

Por: Hugo Sousa

cinecorta@hotmail.com

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