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Não, porque a mim, nem a minha vida me pertence

Deixem-me, por amor de Deus, quebrar este gelo que me tem comprimido e imobilizado, e que tem feito de mim um boquiaberto estupefacto diante de tantas frases proferidas por intelectuais e doutores, por mães e pais, por gente que, na minha miserável interpretação, não passam de fúteis energúmenos, sem sentido de vida, sem os princípios mais elementares, sem humanismo, sem nada.

Gente vazia, capaz de dizer que a mulher é dona e senhora da sua gravidez e é ela que deve decidir se quer ou não ter o filho que carrega consigo. Gente que diz que a mulher deve decidir por si e que é indigno e desumano condená-la por ter decidido abortar. E abortar? É humano? É digno de um ser que foi gerado da mesma forma que agora quer interromper deliberadamente? (…) Ninguém quer ver que o aborto é uma fuga à vergonha social, à incapacidade de assumir uma gravidez que não seria oportuna ou justificável diante do meio social e familiar? Será que não é perceptível que o aborto é a consequência do extraconjugal, do profano, do descuido gratuito? É certo que, muito pontualmente, a violação é causa de gravidez, mas deixará de ser mãe aquela que sofreu esse acto monstruoso por parte de um pai monstro? Deixará de ser filho e gente e homem ou mulher aquele que for gerado por essa mãe?

Será que os defensores do Sim não percebem que a despenalização não vai levar nenhuma destas mulheres aos blocos do hospital e que nenhuma vai assumir socialmente o aborto, só porque é despenalizado? E se acreditarmos que o aborto clandestino acaba com a sua liberalização? Se fosse verdade que teriam fim estes grupos de mercenários que, por dinheiro, abatem na sombra de uma lei sem claridade? Quem nos confere o direito de permitir à mulher que transforme a sua maternidade numa mera masturbação? Quem nos dá o direito de condenar à morte quem nunca cometera qualquer crime? Quem, entre nós, sentirá competência para decidir se os homens de amanhã devem nascer hoje ou ser canalizados, como dejectos, para nunca mais serem ninguém? Será que não percebemos o egoísmo, o retrocesso, o fútil e deplorável que é permitir que alguém, deliberadamente, interrompa um ciclo de vida que já teve início?

(…) seremos capazes de vestir a pele de cordeiro, bater no peito, e condenar a pedofilia, o genocídio, a pena de morte, a violação, o homicídio? E por outro lado permitir que a mulher, até às 10 semanas de gravidez, decida se quer que venha ao mundo do sol, um bebé pleno de saúde, cheio de vida, perfeito e aconchegado num colo quente? Sim, porque actualmente a lei já prevê que seja feito o aborto quando um bebé se apresente, aos olhos do homem, com deficiências ou anomalias. Quantos de nós já nos perguntámos qual será a atitude que está por trás de uma gravidez? (…)

Quem defende o Não, como eu, não se indigna com a rapariga que, por défice de educação ou mero descuido, se deixou engravidar, não condena as mães solteiras nem aquelas que o queiram ser. Quem defende o Não, da forma que eu defendo, desvaloriza, na integridade, os aspectos socialmente correctos, mas ao invés, valoriza na plenitude mais uma vida que, com ou sem amor, foi feita para nascer. Eu valorizo, defendo, acolho, congratulo-me com as mulheres cujo parceiro desprezou quando soube que estas engravidaram, mas que lutam contra as dificuldades e dão provas de que um filho não tem preço, não se dá nem se desmancha.

(…) Ouvi há dias, na rádio, uma sra. doutora dizer que «um filho feito sem amor, não é filho, não merece nascer». Pensem e comentem, convosco, tamanho doutoramento. Meu Deus, quantos de nós, a troco de prazer, estivemos tão perto de conceber um filho….

(Mãe, eu sei que a pobreza extrema, as dificuldades acrescidas, o azedo da vida, a fome e o medo… seriam, hoje, razão para não deixares vir ao mundo os teus cinco filhos, mas porque deixaste e por tudo o que me ensinaste, defendo que o aborto não pode nunca ser permitido).

Fernando Birra, Sabugal

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