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Não há democracia sem razões

No seu coração, a violência traz sempre uma arbitrariedade. Uma democracia praticada sem razões é uma arbitrariedade. Não é democracia nenhuma. É a mesma escuridão que acolhe e protege uma câmara de deputados federais no Brasil de que 60% dos membros estão ser investigados ou já foram mesmo constituídos arguidos.

De facto, o que sucedeu esta semana na câmara de deputados do Brasil demonstra que há um seríssimo mal a infetar a democracia brasileira. Não era só Dilma que tinha legitimidade democrática e a podia invocar. Cada um daqueles 367 deputados federais que votou “sim” foi eleito no seu Estado de origem por meio de voto secreto e direto para um mandato de 4 anos. O que significa que, assumindo que o “impeachment” carece de razões suficientes, o golpe foi perpetrado dentro da democracia e pela própria democracia. Com todas as palavras: foi a democracia brasileira que deu um golpe em si mesma. As razões jurídicas podem ter sido hipócritas, mas foram políticos que a democracia designou quem deu o golpe. Ainda falta o Senado pronunciar-se, mas parece que também aí serão favas contadas. Oxalá não.

Mas a má nova é mesmo que já não podemos ignorar o estado da democracia brasileira. Está doente. Mas de que está doente? Talvez seja mais revelador o sentido das declarações de voto dos deputados federais do que os seus votos. A grande maioria dos deputados que votaram sim gastaram os seus escassos segundos de intervenção a mencionar a família, muitos não dispensando menções pormenorizadas a filhos, cônjuges, netos. Muitos evocaram também o seu amor a deus. Mais vezes do que o amor ao povo brasileiro. Demorando-se nisto nada se preocuparam em dar uma justificação para o seu “sim”. Apenas dois em mais de meio milhar se referiram a “pedaladas”. Houve um deputado que chegou ao ponto de aproveitar para saudar dali, e entusiasticamente, a sua própria família. Na verdade, foi o mais autêntico de todos os que votaram “sim”. Não disfarçou em nada o padrão: ignorar ostensivamente o dever público de apresentar razões, as suas razões. E não por acaso a indiferença às razões era acompanhada pela menção desmedida e inoportuna ao não-público – à família de cada um, aos cônjuges, aos filhos, aos netos, até a deus. Nisto podia surpreender-se uma colonização da esfera pública pela religião ou pela família, mas não é bem aí que está o problema. A democracia não é incompatível com o conservadorismo, que habitualmente, também aqui na Europa, menciona religião e família. O que se testemunhou no domingo foi outra coisa: uma longa operação de expulsão da esfera pública para fora da câmara de deputados, extraída, um a um, de largas centenas de deputados federais em exercício. Dentro desta lógica, quem apresentasse razões para o “impeachment” já estaria a fraquejar. Foi o que sucedeu. Mas com isto, de facto, a democracia é incompatível. Torna-se uma farsa de que todos os perigos se pode esperar.

Por: André Barata

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