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Guatemala [primeiro acto]

Theatrum mundi

Itzapa, Itzapa, Itzapa! A camioneta lá passa, por fim – a uma hora incerta –, entre as 8:45 e as 9:00. Ao ouvir o insistente chamamento, apresso-me a deixar o banco do parque San Sebastián na cidade de Antigua para ocupar um lugar entre os passageiros que, como eu, se dirigem, naquela manhã, ao nordeste do departamento de Chimaltenango. Só ali começam, de verdade, as seis semanas que há-de durar a minha estada na Guatemala; começa ali, finalmente, depois de me instalar junto da família de acolhimento em Antigua e de ser apresentado aos restantes voluntários, o trajecto que irá levar-me, de segunda a sexta-feira, em plena época das chuvas, à imensa aldeia de San Andrés Itzapa. Bilhete não é preciso tirar, diz-me um colega que está ali há já várias semanas. Então entro, cumprimento o senhor Adolfo, o motorista, com um tímido buenos días a que se seguirá o seu sonoro pase adelante – breve troca de palavras que há-de tornar-se ritual diário e em que hei-de querer adaptar a saudação ao sotaque local. O ajudante percorrerá depois a camioneta várias vezes durante o percurso para cobrar os 4 quetzales que custa o serviço. (De um bolso tira as notas, do outro as moedas; vai fazendo os seus trocos ao mesmo tempo que, pelo canto do olho, procura identificar os passageiros acabados de entrar e a quem ainda falta cobrar o ‘bilhete’ que, afinal, não existe; é virtual.) A camioneta, que alguém baptizou de Maria José e cujo nome fez questão de escrever em letras garrafais no cimo do pára-brisas, em papel autocolante, arrasta-se pesadamente, durante 30 a 40 minutos, pelas estradas íngremes, poeirentas de manhã, enlameadas à tarde, que ligam os departamentos de Sacatepéquez e Chimaltenango. (Os perigos da condução na Guatemala fizeram com que tivessem sido ‘semeadas’ pelas estradas do país bandas sonoras de tal forma elevadas que são apelidadas de túmulos.) Em saindo de Antigua, as povoações sucedem-se, enquadradas pelas janelas desconjuntadas da camioneta adquirida em segunda mão e que, em outros tempos, – porventura entre 1960 e 1970 – serviu para transportar escolares, algures na Califórnia, USA. Vejo então Jocotenango, Pastores, Parramos, San Luis Pueblo Nuevo aparecer por entre as cabeleiras de um negro lusidio dos indígenas e ladinos sentados à minha frente. Cada povoação com a sua igreja, cada uma com a sua municipalidad, com os seus tanques públicos para lavar roupa, lado a lado com a paragem da camioneta. (Fora das localidades, não há paragens fixas. Os passageiros chegam-se à estrada e esperam a chegada da camioneta onde lhes dá mais jeito, sem a preocupação de se juntarem aos que já lá esperam, 50 metros adiante ou atrás.) Em Pastores, ao longo da estrada, sucedem-se as lojas que oferecem botas de cano alto, feitas à medida. Não há reclamos luminosos; toda a publicidade é pintada nas paredes exteriores das lojas e o motivo central anda aqui à roda do imaginário cow-boy. Também ao longo da estrada sucedem-se os estaminés de comes e bebes – as tortillas, os ceviches, as enchiladas –, pouco mais que uma mesa e quatro cadeiras debaixo de um frágil toldo de lona para abrigar das chuvas torrenciais os ocasionais clientes à procura de uma refacción, uma refeição ligeira. A estrada eleva-se, aos poucos, aos 2000 metros de altitude e o campo impõe-se agora na sua plenitude com um povoamento cada vez mais disperso. Sucedem-se as paragens da camioneta, de 50 em 50 metros, onde entram e saem as mulheres indígenas com os seus trajes coloridos, trouxas volumosas e uma parte da sua numerosa prole. (A Guatemala é o país com a taxa de natalidade mais elevada de toda a América Latina.) Os homens vão desfilando lá fora, de catana à cintura, puxando cavalos carregados de pés de milho ou lenha ou, na falta de animal de carga, arrastando-os no própio dorso. Aos poucos, dou-me conta de que esse é, frequentemente, um desfile de homens à força, crianças que não têm mais de 12 anos e já sujeitos ao rigor dos mais pesados trabalhos do campo. E, por fim, San Andrés Itzapa. À entrada, um mural dá as boas vindas ao visitante e fico a saber que cheguei à terra da amizade e do chile guaque – uma das sete variedades de pimentos picantes cultivados na Guatemala. Mais à frente, noutra parede, alguém sentiu a urgência de escrever, em azul celestial e ao estilo de grafito urbano, la vida es un tesoro. Depois, reparo nos nomes das lojas – la bendición, la divina providencia, la sagrada familia… A religiosidade está à flor da pele numa sociedade cuja história é uma sucessão de ditaduras e revoluções e onde persistem as desigualdades, o racismo contra os indígena e a violência quotidiana. A camioneta pára no largo da igreja, que é o da feira, o centro de Itzapa. Saio acompanhado dos restantes voluntários e despeço-me do senhor Adolfo com um apressado hasta luego. Ainda sentado ao volante, o motorista há-de responder com um encorajador que les vaya bien!

Por: Marcos Farias Ferreira

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