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Gavotte – 4

Recensão, em 4 partes, de “As Benevolentes”, de Jonathan Littell, (D. Quixote, 2007)

Prosseguindo a leitura em voz alta de “As Benevolentes”, de Jonathan Littel, é fundamental responder ao seguinte: quem era Max Aue? Tomo como fiáveis as impressões que recolhi durante a leitura do livro. A história familiar do protagonista confunde-se com a génese do próprio nazismo: o pai fora um herói militar na Grande Guerra e um membro da aristocracia prussiana. Era o símbolo de um heroísmo inquestionável, mas algo anacrónico, segundo o cânone nacional-socialista. Acontece que ele desaparece, sem deixar rasto, logo após o conflito. O livro é equívoco quanto baste em relação ao seu paradeiro. A mãe acaba por refazer a família, voltando a casar com um homem de negócios francês. Situação que Max nunca irá aceitar e que está na base da sua fuga e adesão à Action Française e, depois, ao nacional-socialismo. Agora tracemos um paralelo com as condições humilhantes impostas pelos vencedores da Guerra de 14-18 à Alemanha, a bancarrota, a busca desesperada de referências colectivas, a restauração de uma ordem mítica, pré-iluminista, a dimensão inimaginável de uma hubris retaliadora e expansionista. O que significa que Max não corresponde de todo ao estereótipo do factotum nazi. Ele adere ao Volkstürm com toda a força das suas convicções, mas as suas referências intelectuais são europeias, fora do habitual cardápio dos autores “recomendados” pela ortodoxia. É bom não esquecer que Aue discutia apaixonadamente sobre Rameau e Couperin com o seu cunhado, compositor e músico. Defendia Kant perante Eichmann. Detestava Wagner. Revelou um profundo conhecimento do marxismo-leninismo, num tête à tête com um comissário político soviético recém-capturado, durante o cerco de Estalinegrado, e fuzilado passadas umas horas. Quis (re)encontrar Léon Degrelle, o incansável mentor do Rexismo belga, após a tomada do norte do Cáucaso, quando este comandava uma brigada que lutava ao lado da Wermacht. Nesse período, teve um breve contacto com o escritor Ernst Jünger, muito popular entre as tropas alemãs. Portanto, Aue era sobretudo um intelectual, a quem agradaria acima de tudo uma carreira académica tranquila, na área do direito internacional, mesmo que com algum proselitismo associado. Enquanto serventuário do regime, revelou uma “correcção” a toda a prova, mesmo quando dava o tiro de misericórdia aos judeus que eram atirados para as valas comuns, durante as execuções em massa de Kiev. Ou quando se insurgiu com os excessos de um oficial, numa aldeia perto de Karkhov, pois agredia “desnecessariamente”, e sem ordens superiores, as mulheres judias, antes de serem fuziladas. Que lhe retribui com uma série de intrigas que determinaram a sua transferência para o fim do mundo: Estalinegrado. Como oficial superior das SS com funções burocráticas, revelou sobretudo a preocupação em tornar o sistema mais eficiente, mesmo que a sua missão fosse racionalizar o extermínio e o aproveitamento da mão-de-obra “disponível”. Não creio que Aue mentisse, no sentido normal do termo. Em grande medida, deixou-se apanhar numa teia que o protegia de si próprio e que só dentro dela existia plenamente. Senti-me compelido a simpatizar com ele, com a sua tragédia pessoal. Acredito que a maioria dos leitores tenha igualmente sido presas desse impulso. Mas foi aqui que Littel revelou a sua mestria, de modo particularmente brilhante. À semelhança de Kafka, não se coibiu de desenrolar a narrativa com todos os detalhes possíveis – por vezes obsessivamente – sabendo que é nos pormenores que o Mal se esconde. No centro do campo de visão esteve sempre Aue. O que quer dizer que, em princípio, só sabemos o que ele nos conta. E o seu relato é de tal forma credível que, nem mesmo após os elementos reunidos na investigação das mortes da mãe e do padrasto, ocorre ao leitor que o autor foi mesmo ele. Permanece unicamente uma vaga suspeição. A dúvida só se desvanece no final, quando mata, a sangue frio, o seu único amigo, Thomas Hauser, depois de este lhe ter salvo a vida. Com o propósito de usar os meios de que este dispunha para adquirir uma nova identidade e fugir para o exílio francês. Até aí, Aue fora simplesmente um passageiro tranquilo e diligente, um oficial exemplar, alguém em busca da sua identidade. Mas percebe-se que é também um homicida. Mais frio e isento de escrúpulos do que aqueles que descreve no teatro de guerra e nos campos de extermínio. Percebe-se, então, que Max escondeu sempre algo, por trás do horror e da barbárie que descreve sem pestanejar: a sua própria natureza. Mas sempre acreditando – e disso querer convencer o leitor – que a verdade inimaginável que conta consome a mentira mesquinha dos seus crimes privados. Portanto, Aue não mentiu, mas omitiu as razões profundas da sua participação naquilo que descreve. Passou em claro a sua íntima natureza amoral. A qual determinou, afinal, a sua adesão inconsciente a um inferno gigantesco, que encobrisse convenientemente o seu inferno particular. Todavia, Max Aue em momento algum teme o destino. E isso aproxima-o da imponderabilidade e da incerteza. Ao mesmo tempo que o coloca muito para lá da censura ou da condenação. E da culpa. Como se, à semelhança do herói da tragédia, a única punição que o destino lhe reservou fosse ter sobrevivido. Por isso, o único facto que ele não confessa – o duplo homicídio – é, digamos, a razão de ser de uma confissão com 900 páginas. Um buraco negro.

Por: António Godinho

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