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Gato ruço de mau pelo

Penso que a minha mãe nunca terá lido “O Meu Pé de Laranja Lima”, de José Mauro de Vasconcelos. É um livro fascinante pleno de emoções e imagens de vida de uma criança, o Zezé, a quem o desemprego do pai, sustento de uma família de cinco pessoas, nunca lhe permitiu brincar com brinquedos inventados por outros. Criou os seus sonhos e cavalgava o seu “raio de luar”… uma galha em forma de sela do seu “pé de laranja lima”, o seu melhor amigo.

Quando li o livro revi-me imediatamente naquela criança. Várias coisas me identificaram com ele. A construção de sonhos e a insensatez de pegar neles e trazê-los estampados no olhar, deixar que entrassem pela janela da sala de aulas da escola e sair com eles voando no meio de uma lição de aritmética. Invariavelmente, acordava do sonho com uma pergunta… Quantos são 7×8 meu menino?

Invariavelmente depois da pergunta a reguada que se seguia acabava de apagar por segundos o sonho.

Tinha o azar da professora que me dava a reguada acumular em “part-time” a função de mãe depois das aulas. A noção de justiça da minha mãe sempre lhe ditou uma regra que de menino não entendia. Na escola eu era um aluno como os outros, o primeiro da fila a estender a mão à régua e o primeiro a ver as unhas inspecionadas à entrada da escola, como se aquelas unhas não tivessem sido já alvo de reparo ao acordar, ao pequeno-almoço e no caminho feito a pé de 4 quilómetros até à escola! Como é que uma criança entende que na escola quando se dirige à mãe tem de a chamar Srª Professora como os outros todos? Como é que se esconde da professora mãe que não se fez o tpc? Ela já sabia!!! Porque tinha de me perguntar pelos trabalhos de casa?

Acho que foi essa a forma de me mostrar que os privilégios se conquistam, não se devem herdar dos outros sem os merecer.

Penso que José Mauro de Vasconcelos deve ter ouvido a minha mãe.

Percebo hoje que quando deixava de ser professora e, em família, se referia a mim como… este é um “gato ruço de mau pelo”, o fazia com carinho. Um carinho que ela sentia no que dizia um misto de preocupação, mas também orgulho por eu ser um sonhador com os sonhos estampados no rosto mas a tabuada esquecida na sacola.

Eu era um gato ruço de mau pelo, travesso nas ideias, mas de coração meigo e sonhador. Ao Zezé, J. M. Vasconcelos também chama gato ruço de mau pelo. Não sei o que aconteceu ao Zezé quando cresceu, mas tenho cá para mim que deve ser professor ou enfermeiro. É que não conheço nenhum que não traga nos olhos estampado o sonho de mudar o mundo. Uns encontraram a realização do sonho na formação de pessoas e outros encontram o sonho no cuidado de pessoas a quem a doença interrompeu a vontade de sonhar.

A todos os que serão capazes durante este ano que agora começa de arranjar intervalos para sonhar.

À minha mãe… por me ter mostrado que as reguadas são importantes nos intervalos dos sonhos… Um beijo do seu “gato ruço de mau pelo”.

Por: Júlio Salvador

Comentários dos nossos leitores
xico bárbara dpedroguarda@gmail.com
Comentário:
Gostei de ler…tão simples…tão verdadeiro…tão discreto!
 
Cristina Santos cristinasantos_0@hotmail.com
Comentário:
Tia Mimi…que saudades!
 

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