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Fogo

Perto de minha casa, havia aquele prédio imenso, multiplicado em várias portas. Numa delas, estava o alfaiate onde o meu pai mandava fazer os fatos. Eu acompanhava-o às provas: várias, longas e metódicas. Na primeira, conferiam-se as formas e os tamanhos. Na segunda, faziam-se os ajustamentos e passava-se aos pormenores, onde dizem que Deus acaba e o diabo começa. Ensaiava-se com exactidão o alcance das mangas (o punho da camisa tinha de se ver, mas não muito) e o cair da gola. Isso era o mais difícil: a gola não podia ficar nem muito subida nem muito descida. A procura desse meio termo aristotelicamente virtuoso demorava tempo e exigia gramática. Quero eu dizer: interjeições e interrogações. E o modo como o casaco caía nas costas era também o principal. O alfaiate, quando fiz o meu primeiro fato, ainda com calções até aos joelhos, pediu-me, mas como se me repreendesse, para me pôr direito e não levantar os ombros.

Ao lado do alfaiate, era a ourivesaria. A minha mãe gostava de lá ir. De comprar o que se lá vendia e de conversar com a senhora que, com modos corteses e medidos, passava o peso do ouro das suas mãos para as mãos das visitantes, recebendo em troca notas que a faziam sorrir e ser gentil. A senhora era subtil e falava da vida como se contasse um segredo. Hoje, sei que a minha mãe procurava ali um outro ouro, mais leve e mais fugaz do que aquele: o ouro do tempo, de que falava Breton (“Je cherche l’or du temps”).

Foi nesse prédio a minha primeira escola. Irrequieto e curioso, os meus pais acharam que, mesmo dois anos antes do que seria normal, era bom – para mim e para eles – eu ir para essa aula particular onde a professora aceitava alunos antes da idade legal. Tinha ela métodos infalíveis para nos ensinar a ler, a escrever e a contar. A sentença imutável e sem recurso era: cada erro, cada reguada. Eu deixei de os dar para as deixar de apanhar. Quando fiz 6 anos e entrei, noutra escola, para a primeira classe, a professora que me recebeu surpreendia-se com a minha sabedoria, sem conseguir achar a razão do prodígio… Se fosse hoje, mandava-me para os psicólogos que acompanham os sobredotados. Por desconhecimento de causa, teria cometido um grave engano…

Havia aquele prédio da minha primeira escola e das minhas primeiras lojas. Numa tarde de Agosto, quando regressava a casa, fui arrebatado por um vento vermelho que crescia e crescia e crescia. O prédio ardia: ardeu até se negar. Eu já tinha visto incêndios, mas nenhum de tão perto e nenhum tão indomável. Os bombeiros levantavam-se sobre eles próprios, exaustos e enraivecidos. Corriam, mas era como se estivessem parados. Os moradores daquelas casas extintas, ao verem que ficavam apenas com a roupa que tinham no corpo, abriam a boca e gritavam para dentro deles e para dentro de nós um desespero mais puro e mais alto do que as chamas. Esses gritos, atirados à noite trémula e iluminada, ficaram para mim como a prova de que os homens se tornam deuses e animais no perigo. Deuses, porque querem morrer e não conseguem. Animais, porque os seus uivos são selvagens, contínuos e sem vergonha.

As horas sucediam-se como reis de uma dinastia louca, e o fogo continuava a devorar tudo, atravessando o nosso pânico e quase chegando à nossa casa. Passei a noite a olhar, assombrado, o oscilar daquela treva de luz, o correr daquela caligrafia incandescente, alta e destruidora. Nas noites seguintes, era como se não conseguisse fechar os olhos, pois sonhava que eles continuavam abertos. Ali fiquei, enquanto as cinzas não trouxeram a madrugada. Ali escutei, aterrado, aqueles gritos subumanos e nus. Durante muitos meses, era como se os meus ouvidos ainda estivessem num lugar diferente daquele onde eu estava.

O fogo atravessa, inextinguível, todas as mitologias e todas as literaturas. Gaston Bechelard, em A Psicanálise do Fogo, procura explicar essa persistência, falando de três complexos: o de Prometeu (que ele diz ser o Édipo da vida intelectual), de Empédocles e de Novalis. E diz que o fogo liga os dois grandes instintos, o de viver e o de morrer. Cada artista, cada cientista, cada escritor trabalha o fogo ou a sua ausência. É um pirómano em fuga: ladrão do fogo e seu adorador. Por isso, quando perguntaram a Jean Cocteau o que salvaria se a sua casa ardesse, ele respondeu: o fogo.

Por: José Manuel dos Santos

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