Fernando é brasileiro, vive nos EUA, é “software developer” em San Francisco. Laura é inglesa e advogada. Conheceram-se lá. Têm em comum o gosto pelo ciclismo. Um dia Fernando resolveu que queria conhecer Portugal. Como não podia deixar de ser, fez todas as reservas de viagens e hotéis via Internet e planeou, via Google Earth, o percurso que iria fazer nesse pequeno país. Fez as malas, ou melhor, os alforges que iria transportar nas bicicletas e, junto com Laura, apanhou o avião e aterrou na Portela ao fim de algumas horas. O plano de férias é percorrer Portugal de bicicleta, descendo até Évora, subindo pelo interior até Trás-os-Montes, depois Porto e descer junto ao litoral de volta a Lisboa, maximizando, dessa forma a maior variedade de paisagens no curto período de férias disponível.
Os primeiros dias correram como planeado. O quinto dia levá-los-á de Belmonte até ao Pocinho, 130 quilómetros de uma dureza que não tinham experimentado até aí. Arrancam cedo e sobem até à Guarda. Cá, encontram temperaturas baixas, nevoeiro e falta de sinalização. Sobem pelo Liceu e pretendem apanhar a estrada do Alvendre em direção a Vila Franca das Naves. Mas Fernando está perdido; o GPS não funciona e o tempo urge pois tem um comboio para apanhar. Ele está a arrefecer perigosamante. Seguir viagem neste estado será arriscado. O frio impiedoso da nossa cidade tira-lhe a clarividência de perceber que sabe falar português e tenta comunicar em inglês, exibindo um mapa com escala pequena à rececionista do Modelo, o que só dificulta as coisas. Ana, minha mulher, passando pelo casal, rapidamente se apercebe que algo não está bem com eles. Mas em vez de ficar indiferente à situação, opta por ligar-me de imediato. “Zé, estão aqui uns ciclistas estrangeiros perdidos e não sei como ajudá-los, achas que os mande ter contigo?”
Soou o alarme. Três palavras “ciclistas, estrangeiros, perdidos” a juntar a mais duas “frio (do) caraças”. Pedi-lhe para lhes dizer para me aguardarem que iria ter com eles. Levei o Land Rover à cautela. Cheguei e apresentámo-nos, reparei nele a tiritar de frio, perguntei para onde iam, disseram-me que iam rumo ao Pocinho e que tinham de lá estar dentro de quatro horas. Sorri-lhes. Era impossível. Deitei os bancos do jipe e arrumámos as bicicletas. Disse-lhes que agora era prioritário recuperarem e para não se preocuparem que, nesse dia, não iriam pedalar mais. Um sorriso rasgado iluminou-lhes o rosto. Levei-os para minha casa para retemperarem as forças. Servi-lhes chá bem quente, pão, queijo e doce e, no fim, um bom tinto do Douro. Já recuperados, perguntei ao Fernando: “Acreditas no destino?” Respondeu-me que não. Eu também não, respondi-lhe. Mas há coisas do caraças, não há? Nos teus programas informáticos, com toda a matemática envolvida e seus algoritmos, qual a probabilidade de preveres que isto te ia acontecer hoje? Que, numa pequena cidade do interior de Portugal, a milhares de quilómetros de casa, um casal se apercebesse que estavam em apuros e que tivesse feito tudo para vos ajudar? Estarão já todas as nossas ações pré-determinadas?
“Isso não sei, mas sabes que faria exatamente o mesmo por ti, não sabes?”, respondeu, e eu anuí. “Tens uma casa à disposição em São Francisco”, disse-me. Metemo-nos à estrada. Falámos de muitas coisas, ciclismo, paisagens, gastronomia, etc. Estão a adorar Portugal. A meio diz-me que o mínimo que me pode fazer para me agradecer é pagar-me a viagem. Digo-lhe que nem pense nisso. Ele insiste dizendo-me que não se sentiria bem se não o fizesse. Perante a sua insistência, aceitei, “Só uma ajuda então, para o gasóleo, nem mais um tostão”. Combinado. Chegámos ao destino. Uma estação fantasma, mas uma linha férrea das mais belas do mundo pela frente. Para eles a linha Pocinho-Pinhão. Descarregamos o material. Fernando pretende pagar-me com muito, mas eu aceito muito menos. Fica admirado, mas eu recordo-lhe: “Só uma ajuda, lembras-te?” Um abraço a ele e dois beijos à surpreendida Laura (nos “states”, esta coisa de beijos na face só nos “dates”), mas aguenta-se, em Roma é romana. Dou-lhes o meu endereço de email, com a certeza de que os nossos caminhos dificilmente se deverão voltar a cruzar. Regresso com uma sensação de bem-estar e um sorriso.
À nossa maneira, influenciámos e colocámos nos carris a aventura de dois desconhecidos. Afinal, o sentido da vida é isto mesmo, entre outras coisas. Num mundo cada vez mais individualista poderem cruzar-se vidas, nem que seja por curtos momentos, e espontaneamente partilharem empatia, compaixão e entreajuda, faz-nos sentir que este mundo (ainda) é um bom mundo onde viver. De alguma forma entrámos nas vidas deles e eles nas nossas e, de vez em quando, quando calhar em conversa, recordar-nos-emos uns dos outros e do dia em que a fria Guarda nos apresentou.
Por: José Carlos Lopes