1. Quando olhamos para aquilo que enquadra o aparecimento do fenómeno de Fátima no início do século XX, não podemos esquecer o ambiente de forte turbulência entre Igreja e Estado no tempo da 1ª República, entre 1910 e 1926. Habituados durante séculos a viver legitimados um pelo outro, o corte infligido pela Lei da Separação imposta pelo novo regime introduziu desequilíbrios que a miséria e a guerra de 1914-18 só vieram dramatizar ainda mais. 1917 é assim um ano terrível de agravamento das condições de sobrevivência dos portugueses, alarmados e ressentidos pela partida dos mais jovens para as trincheiras. Diante de um país quase totalmente católico, foi um suicídio a ofensiva anti-Igreja por parte da República, em que o governo definia os cultos possíveis e influía na eleição dos Bispos. Em momentos de miséria económica, social e moral é natural que as pessoas se apeguem ainda mais à ideia religiosa e assim Fátima encontrou as melhores condições para crescer como fenómeno que foi seguro de sobrevivência da Igreja portuguesa naqueles anos difíceis. De ressaltar que esta dificuldade na separação entre Igreja e Estado ainda hoje é manifesta, com o Estado a sentir-se por exemplo na obrigação de premiar a vinda de um papa com um feriado para funcionários públicos.
Curioso é que o fenómeno das aparições não chegue nunca a ser considerado pela Igreja questão de dogma, mas sim de fé e devoção pessoal. É assim que os papas (exceto João Paulo II) têm tratado a instituição Fátima, com alguma distância, não mostrando nunca que “acreditam” nas ditas aparições mas aceitando Fátima como espaço de celebração religiosa em favor de um mundo em que a religião tem o seu lugar como laço de união entre as pessoas nos seus desígnios de convivência. As declarações de um bispo que há poucas semanas chamou «visões místicas» às aparições de Fátima não se diferenciam assim muito da posição do papa Ratzinger que tratava as visões de Lúcia como «revelações privadas» derivadas de imagens colhidas pela vidente em «livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé». Aliás foi Ratzinger que, com a revelação do segredo de Fátima e o seu comentário ao mesmo, veio esvaziar a visão apocalíptica que se ia construindo desta revelação por fazer. O resto do “segredo” foi sendo desconstruído também pela sua origem nos anos 30, época de construção dos fascismos europeus e em que convinha ao regime português o ataque à revolução soviética. Como é que a “Senhora” podia ter alertado contra o perigo soviético esquecendo a “besta nazi” que na mesma altura crescia?
2.O espaço de Fátima atrai-nos por essa “qualquer coisa de transcendente” que ali pressentimos, impressionados pelo menos pela fé imensa dos que lá vão rezar ou dos que andam muitos quilómetros a pé, para simplesmente lá chegar. Também nos agarra aquele cântico de “Ó Fátima, adeus!” que arrepia mesmo quem não acredita, espécie de súmula dos dramas dos sofredores que ali se juntam e agora se vão com um pouquinho mais de esperança e de regresso à sua “vidinha”. Atrai-nos ainda por ser uma bela construção de narrativas cruzadas juntando “aparições” e “milagres” ali operados numa sequência cuja interpretação religiosa faz sentido para muita gente e para esses se torna indiscutível. Nos tempos de hoje a Igreja muniu-se de instrumentos vigorosos de autocensura que levam a que não haja “aparições” reconhecidas nos últimos cem anos. Quanto aos “milagres”, a fraca espécie humana, sujeita à doença e à miséria e com a morte sempre à espreita, continua atreita a neles acreditar seja para ganhar um emprego, conseguir tornar o seu clube campeão ou salvar a saúde quando a medicina já não consegue mais. Quando se trata da canonização dos santos, então é que os “milagres” nos impressionam ainda mais. Sendo em geral questões de saúde o que está em causa, prefere-se considerar como milagre algo que eventualmente a medicina (ainda) não foi capaz de prever ou explicar, passando o “não explicado” a “graça do sobrenatural” pela força da intercessão de uma “alma superior nossa aliada”.
Se esses “santos” são crianças, como Francisco e Jacinta Marto, a perplexidade é ainda maior. Diante da necessidade de ligar a ideia de santidade à de mérito, não se vê como a inocência de dois miúdos pode ser assim sobrevalorizada. Não serão todas as crianças “santas” na perspetiva da Igreja que as canoniza? É como se nós olhássemos para os nossos filhos ou netos de 7 ou 8 anos e os imaginássemos (“bons” ou “maus” como eles alternadamente são) a ser venerados nos altares. Não há qualquer coisa que aqui não bate certo, mesmo para os altos dignitários da Igreja?
A própria ideia de milagre, “atestada” por “especialistas”, incluindo clínicos, não é algo que já devia estar fora dos parâmetros das canonizações? Como pode haver médicos a defender que há milagre numa cura? Quantos “milagres” deste tipo não estarão hoje mais do que explicados com o evoluir da medicina? Milagre no fundo é o que a gente quiser, podendo ser no limite uma espécie de transposição para o extraordinário da “cunha” que as pessoas interiorizaram como normal na vida social.
(A ler: número da Visão-História dedicado a “Fátima – A construção do fenómeno”, jan. 2017)
Por: Joaquim Igreja