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Esses brandos costumes…

Theatrum mundi

Com o país eufórico e já em ‘estágio’ para assistir ao mundial de futebol, as mulheres ocupadas em contribuir para a patriótica tarefa de construir a ‘mais bela bandeira do mundo’, o presidente Cavaco recorre ao primeiro veto político do seu mandato e usa-o contra a lei da paridade aprovada recentemente pelo Parlamento. Não põe em causa o princípio da paridade entre homens e mulheres – como poderia Cavaco rejeitar a aplicação desse princípio na vida política? –, mas entende que uma lei que obrigue os partidos a pô-lo em prática na formação de listas eleitorais – e a sancioná-los no caso de o não cumprirem – é desproporcional, excessiva e até lesiva dos verdadeiros interesses das mulheres. A posição política de Cavaco reflecte a orientação ideológica do PSD e do CDS nesta matéria, cujos dirigentes têm paternalisticamente vindo a manifestar que «é pelo mérito que as mulheres se devem impor na política e não por quotas» – como se o mérito fosse o critério para fazer uma carreira política, e não o pequeno expediente –, chegando mesmo a defender a revolucionária ideia de que é preciso mudar a sociedade para garantir às mulheres as condições de base da participação política. O improvável e inadvertido, estou certo, recurso dos dirigentes do PSD e do CDS ao mais puro materialismo marxista só torna ainda mais evidente a vontade de deixar tudo na mesma. Só falta ouvir esses dirigentes vociferar: «é a infraestrutura, stupid!» Afirma-se, até à exaustão, a fidelidade ao princípio progressista para, logo a seguir, se agir de forma conservadora. E não é difícil de entender por que é que a atitude conservadora é tão atractiva para as máquinas partidárias, incluindo a do PS, que reagiu com incontido alívio ao veto presidencial… É claro que o sistema de quotas deixa muito a desejar e é artificial mas, como acontece com todos os modelos de discriminação positiva aplicados no Ocidente desenvolvido, são as profundas injustiças que subsistem nas relações sociais do mundo moderno que exigem medidas de excepção para forçar a mudança da realidade. Olhe-se mais uma vez para Espanha, e para o exemplo do governo Zapatero, para testemunhar os resultados de uma verdadeira política de paridade num país com obstáculos sociais tão reais como o nosso… Entretanto, no país dos brandos costumes e da mais bela bandeira do mundo, pensamos como o jornalista Luís Delgado, e perguntamo-nos para quê forçar a mudança quando a realidade mudará por si mesma, dentro de 20 ou 30 anos… Entretanto, no mesmo país dos brandos costumes, a mobilização das mulheres vai-se circunscrevendo ao circo do futebol – à espera que dentro de 20 ou talvez 30 anos as coisas sejam diferentes! No país dos brandos costumes, o governo de Sócrates mostra-se demasiado aliviado cada vez que encontra um obstáculo à aprovação de uma lei progressista e se vê ‘obrigado’ a metê-la na gaveta. São vários os exemplos no que vai de legislatura e aproxima-se uma nova ocasião – a lei anti-tabaco. É de prever que, em nome dos brandos costumes, tudo fique na mesma, e se encontre uma solução – outro veto presidencial, porventura – que a nada obrigue; que reafirme o compromisso de libertar os espaços públicos fechados do fumo do tabaco mas estabelecendo tantas excepções que acabe por se tornar conivente, na prática, com a sua ineficácia. Como acontecerá, provavelmente, com uma nova lei da paridade de bitola presidencial. A bem da preservação dos brandos costumes…

Por: Marcos Farias Ferreira

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