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¿España se rompe?

Theatrum mundi

Como em qualquer outra democracia, em Espanha, a política é o instrumento que permite à sociedade a resolução mediada dos conflitos que nascem no seu seio e que, por conseguinte, derivam de projectos de vida em comum. Como em qualquer outra democracia, em Espanha, a resolução dos conflitos também depende de uma cultura de negociação entre o poder/estado e a sociedade, e no seio desta, e da existência de um suporte institucional que permita dar voz a interesses divergentes, ou seja, aos conflitos sociais, e canalizar a negociação entre os diversos actores. É isto que caracteriza a democracia numa sociedade complexa e plural como a sociedade espanhola, e grande parte das sociedades actuais confrontam-se com o mesmo tipo de problema ou desafio que não é mais do que a necessidade de inventar/reinventar os mecanismos de mediação da vitalidade social e os conflitos que ela produz. Sejamos claros, a democracia não se mede pela ausência de conflitos, mas pela possibilidade de manifestação e resolução aberta dos mesmos. Pelo que são tão importantes as discussões em torno do aparelho de justiça, e também as preocupações relativas à possibilidade de articulação da ‘diferença’ no espaço público, como no caso dos media ou da escola. A democracia é um processo bem mais complexo, frágil e exigente do que o jogo partidário de luta pelo poder executivo do estado, e o cidadão tende a confundir complexidade e expressão aberta dos conflitos sociais com uma intolerável degradação do exercício do poder e da vida social. Sobretudo quando o termo de comparação histórica é a negação da política, ou seja, a repressão dos conflitos sociais, essa espécie de paz dos cemitério vigente nos estados autoritários. O desafio da democracia não é o da realização de eleições livres, mas o da construção de toda a estrutura deliberativa capaz de dar voz a uma sociedade plural.

Neste sentido, é um erro olhar para a política espanhola como um fenómeno bizarro ou um edifício permanentemente à beira do colapso. E do lado de cá da fronteira abundam os juízos mais ou menos condescendentes sobre um ‘animal’ político que teimamos em conhecer mal. A possibilidade da política em Espanha está sujeita a múltiplos desafios, e essa exigência é notória no quotidiano (a presente legislatura tem sido bem exemplo disso). Contudo, não nos devemos esquecer que a qualidade da democracia espanhola é o resultado da resposta tentada, ao longo dos últimos 30 anos, a esses desafios e da complexa e plural estrutura deliberativa posta em marcha para permitir a articulação de diferentes interesses e colocar limites à negação da própria política. No momento em que passam 30 anos da Constituição de 1977, e 25 da chegada ao poder de Felipe González e do PSOE, é possível dizer que a qualidade da democracia espanhola é o resultado directo das respostas tentadas a dois tipos de desafio que afectam várias outras sociedades: a descentralização do estado e o terrorismo. Se no primeiro caso a finalidade é a de produzir melhor governação em benefício dos cidadãos e dar expressão política à pluralidade de identidades e interesses regionais – e a Espanha das autonomias conseguiu ambas, apesar de novos patamares de exigência –, no segundo, a finalidade continua a ser a de lutar contra a própria negação da política que é representada pelo terrorismo. Ao longo dos últimos 30 anos, a democracia espanhola não maturou só através do processo de reorganização do estado e do permanente jogo de articulação e mediação aberta dos interesses das autonomias; também o fez através das respostas que soube dar ao terrorismo. A judicialização do combate à ETA e ao seu ‘entorno’, a desarticulação dos seus vários comandos, a negociação pontual de tréguas, a cooperação policial com a França, tudo representa um processo de respostas tentadas onde não faltou sequer a tentação de utilizar meios ilegais. Assim, num momento em que a direita espanhola mais ultramontana não se cansa de bradar, a propósito das opções do governo Zapatero para aqueles dois desafios, que “España se rompe”, ela não compreende, ou não quer compreender, que são os próprios fundamentos da democracia que está a atacar.

Por: Marcos Farias Ferreira

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