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Era uma vez uma cidade sem “shopping”

Não gosto de “shoppings”! Não gosto porque destroem o que de mais interessante as cidades são feitas – do seu espaço público, no essencial, da sua vida urbana que confere o carácter a cada cidade. Não gosto destes modelos padronizados importados que concentram a actividade de comércio, lazer e afins num edifício, em lojas standard, com marcas standard, com pessoas standard. Gosto, do comércio diversificado que vive da rua, do espaço público, que se acede directamente e se relaciona com o espaço exterior. Gosto do comércio que é diferente indo de Viseu, a Vila Real, a Faro, a Évora, a Freixo de Espada à Cinta. Gosto do carácter das cidades que são em parte construídas pelo comércio “tradicional”. Gosto das cidades com turistas que procuram motivos para voltar. Gosto de cidades que a construção não seja apenas física e se transforme em arquitectura para poder transformar-se numa mais valia patrimonial. É, em certa medida, o modo de nos relacionarmos no espaço construído da cidade que promovemos as nossas próprias raízes e as damos a conhecer.

A nova “Catedral” da Guarda

Não se trata de uma nova catedral para a prática do culto religioso, mas pela dimensão física que ostenta pouco faltará para igualar a Sé Catedral. É a nova catedral dedicada à prática consumista, do passear aos fins-de-semana por lá, de um lazer em “fast food”, de uma facilidade para quem gosta de ter tudo por perto. É extensa e esguia como um templo gótico, mas a sua forma reveste-se por um acumulado de painéis com estrias, como nas auto-estradas. Faz sombra às construções vizinhas de tal forma que o sol deixou de estar presente. É compacta, dissimulando o seu pretenso carácter de contentor consumista. A sua volumetria e presença vislumbra-se ao longe, numa enorme mancha fora da escala da morfologia da cidade. Nem a proximidade da muralha travou o desenho dominante da nova casa de compras, do “shopping” que está em vias de ser inaugurado. Seria necessário todo este impacto para termos uma cidade que parece depender desta fórmula importada e injectada para poder vingar?

Onde está o IGESPAR?

Sobre esta intervenção que se implanta contiguamente à muralha medieval gostava de entender ou, se alguém me quiser explicar, qual o papel do Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (IGESPAR) enquanto entidade “reguladora” do estetizado centro histórico. O mais provável é arranjarem formas de dizer que não sabiam, que não está dentro da zona de protecção da muralha, que não existe plano, que não existe regulamento, que o gosto é discutível e aleatório, etc, etc. Como é costume, vão arranjar “meios” para justificar os fins e para o caso, este já está consumado. E, na prática, esta conversa não adiantará de muito, uma vez que seremos esclarecidos que está tudo bem e dentro da legalidade e o novo “shopping” está muito, muito bonito, e dará muitos empregos… que se lixe o resto. Tenho-me questionado, cada vez mais, sobre a necessidade de existir uma entidade que funciona para preservar, valorizar o nosso património (essencialmente centros históricos) uma vez que à volta das áreas da sua jurisdição vale deixar fazer de tudo. Será que serve apenas para dar pareceres sobre pequenas intervenções no miolo do centro histórico?

Com esta intervenção onde está, ou se pode ler, a salvaguarda do património edificado e do seu contexto? Desapareceu o enquadramento físico e paisagístico que a muralha formulava com a paisagem envolvente. Em todo o caso, é discutível se será mais eficaz este edifício, que se contrapõe ao resto da muralha, do que, ter contiguamente à muralha uns arranjos medíocres em forma de ajardinamentos com projectores que alumiam os seus restos. De facto, este modelo de construção da cidade e de vivência coloca o campo da cidade tradicional em causa, em extremos muito opostos. Não se pode fazer melhor, equilibrar os desequilíbrios?

Arranjamos uma comissão de análise?

Do ponto de vista do investimento realizado e o modo como o modelo de “shopping” é formalizado é discutível até ao ponto da sua legalidade. A sua forma física e visual supera a sua natural rentabilização. Pressuponho que a rentabilização está ligada à quantidade em detrimento da qualidade, seguindo lógicas consumistas previamente estabelecidas para a realização do custo/benefício do investimento. O mais curioso é que, à luz do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, não parece que esta construção esteja a cumprir o artigo 58.º que refere: “a construção ou reconstrução de qualquer edifício deve executar-se por forma que fiquem assegurados o arejamento, iluminação natural a exposição prolongada à acção directa dos raios solares, (…) E também no artigo 59.º diz: “A altura de qualquer edificação será fixada de forma que em todos os planos verticais perpendiculares à fachada nenhum dos seus elementos com excepção de chaminés e acessórios decorativos, ultrapasse o limite definido pela linha recta a 45.º, traçada em cada um desses planos a partir do alinhamento da edificação fronteira, definido pela intersecção do seu plano com o terreno exterior.” Assim, não é difícil verificar por aquilo que se vislumbra de que o que está erguido não cumpre o que a lei determina e impõe. Não tem remédio, está feito!

Um dos aspectos que me parece importante referir é que se promova a construção de um “shopping” numa cidade que não tinha até agora destas coisas. Seria uma mais valia para a cidade, se se pudesse discutir, promover outras lógicas de refundação do comércio da cidade. Agora, talvez seja tarde… Fica a dúvida, até que ponto este excesso de volumetria para o espaço disponível será uma espécie de âncora que irá fazer desaparecer o comércio tradicional de rua ou pelo contrário o irá modernizar e consolidar?

Já me esquecia… está previsto mais outra “coisa” destas lá para os lados do Bonfim… podem-nos dar a conhecer publicamente o que está para lá projectado?

Por: Carlos Veloso

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