Admito. Ando preocupado com a situação da Esmeralda, a menina de cinco anos que a mãe entregou a uma casal para adopção e o tribunal mandou devolver ao pai biológico. Primeiro, porque tanto azar na vida em apenas cinco anos não deixa adivinhar nada de bom. Filha de imigrante ilegal, rejeitada à primeira pelo dono do espermatozóide que a fecundou, educada por um sargento do exército e tema de um Prós e Contras. Note-se que nada me move contra imigrantes ilegais, trolhas burgessos ou militares. A imigração, a construção civil e as Forças Armadas contribuíram muito para a modernidade portuguesa, por isso devemos estar-lhes agradecidos. Além disso, cada um à sua maneira contribuiu para o equilíbrio demográfico nacional e com um assunto porreiro para aberturas de telejornais excitantes, editorais de imprensa ponderados e artigos de opinião inteligentes. E para a minha coluna também, como o leitor pode ler, se entretanto não tiver ido comprar o Sexus ou o Jornal do Incrível.
Tenho para mim (aprecio muito esta maneira popular de dizer “Vou agora dizer o que penso e tu vais ouvir-me caladinho porque a minha opinião é tão importante como a tua, oh falinhas mansas caixa-de-óculos armado em doutor”), tenho para mim, dizia eu antes de ser interrompido pelos parêntesis, que o tribunal sucumbiu ao lóbi (não é que eu goste de escrever lobby desta forma, mas o Prof. Malaca Casteleiro é, por assim dizer, um “colega”) dos empreiteiros e decidiu entregar a custódia da criança ao trabalhador da indústria da construção, contra o que julgou ser a má imagem que neste momento têm na opinião pública os militares. É provável que a juíza tenha desconfiado que uma rapariga criada por um sargento acabasse por se tornar numa adolescente ordeira e disciplinada (e portanto uma aberração social), com gosto por exercício físico e camuflados (com potencial para o lesbianismo), e acabasse também ela nas fileiras da Marinha ou da GNR (em vez de cabeleireira, modista ou juíza), pelo que concluiu ser melhor para a criança ser entregue ao dono do espermatozóide, pois a humildade, a dureza do trabalho manual temporário e a convivência com várias gerações debaixo do mesmo tecto são, como diria um psicólogo, “fortalecedores de carácter”. Com o que não contava a meritíssima juíza (a qual espero não me mande prender, e isto por três razões: primeiro, porque não há razão para um jornal do povo rude das Beiras ir ter a magistrados cosmopolitas e sofisticados de Torres Novas; segundo, porque sou um palerma, o que julgo ser uma forte razão para alegação de pessoa inimputável; e terceiro, porque tenho um gato novo em casa e ele não está habituado a outras pessoas), a excelentíssima juíza, repito (raios partam hoje os parêntesis que não me deixam acabar as ideias), não esperava que o povo caísse, salvo seja, nos braços do homem das armas em desfavor do rapaz da betoneira. E tudo porque, argumentam, não se tira uma criança de cinco anos à família que a criou e educou para ser levada por um homem que a menina mal conhece. Por acaso, foi exactamente este o argumento que a mãe da minha ex-namorada usou para a proibir de sair comigo, com uma diferença óbvia numa das palavras da frase. Em vez de “homem”, a senhora disse “gajo”.
Esmeralda corre agora o risco de ter dois pais e duas mães, o que aos quinze anos vai provocar duplas “crises do armário”. (Por exemplo, a lei no Canadá permite que as crianças sejam perfilhadas por duas mulheres, tendo dessa forma duas mães. Em Portugal, também os filhos de Cláudio Ramos e José Castelo Branco têm duas mães e para já não são conhecidas danos traumáticos.)
Nem todas as crianças nascem em berço de ouro e com a mesma sorte. Oliver Twist, por exemplo, saiu da pena de Dickens, enquanto Esmeralda caiu na pena de Fátima Campos Ferreira. Oxalá a Fortuna lhe sorria.
Por: Nuno Amaral Jerónimo