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(Des)encantos (des)ordenados

Opinião – Ovo de Colombo

E se o nosso olhar ficasse de repente desamparado de toda e qualquer ideia que até aqui preconcebera? E se os nossos caixotes do lixo fossem uma extensão da nossa metafísica? E se as rotundas, num milagre geométrico, em vez de nos fazerem movimentar em círculos, tivessem a função pedagógica de nos ajudar a escolher um caminho? Quem se atira para “Matteo Perdeu o Emprego” não se vai apoderar de muitas respostas, pois Gonçalo M. Tavares sabe bem como nos enrolar num eterno caleidoscópio de mistérios, sem que dele sintamos a necessidade (ou sequer vontade) de nos desprendermos.

O texto nasce sem chão, a história cria ilusão, e a verdade que encontramos na rotunda de Aaranson (primeira personagem; primeira letra do alfabeto) não será a mesma que lemos no terceiro andar de Nedermeyer (última personagem; última letra do alfabeto). Era como se de rolos fotográficos, ao acaso, nos fossem reveladas almas a preto e branco – sim, porque, acredito que a alma só pode mesmo ser capturada nessa dupla cromática – que não se sabe muito bem onde começam e por que começam, mas cremos que se alguém nos trouxe até elas foi por algum motivo.

Portanto, a nossa retina, na ânsia de crescer com os membros do corpo dos outros, dispara para várias direcções, e o nome que vem a negrito que se encarregue de encaminhar para os lugares (ou abismos) que mais queremos (re)conhecer. Aqui, ora podemos ser puxados para a resistência que o professor Diamond criara juntamente com 22 alunos quando a sala de aula é invadida pelo lixo, e o sentimento generoso que daí nasce, pois este tutor acredita honestamente que «o lixo quer aprender»; ora podemos perder-nos pela forma pouco comum e aleatória como o rapaz de 16 anos (Kashine) resolve espalhar a palavra “não” em qualquer lugar – um “não”, sem mais nada, um “não”, despido, pronto a destruir, um “não” para o mundo sucumbir; ou, ainda, pela forma silenciosa como uma clareira se extingue, quando um duelo invisível entre um casal deixa de acontecer.

São 26 protagonistas, mas cada um deles só nos é dado a conhecer quando o outro fica para trás. Este efeito de aparecer sobre o desaparecimento do outro derruba todo e qualquer sentimento de empatia que estaria prestes a surgir. São, no entanto, os olhares vazios das fotografias de manequins (que separam cada mini-conto) que pedem esse preenchimento e essa ligação. Claro que o leitor (nómada pela curiosidade, e preguiçoso pelo preconceito) tentará traçar a sua lógica, mas, algures, no caminho, talvez o desafio não esteja nessa procura pela ordem, e sim na possibilidade de saltarmos em trapézios, reconhecendo o absurdo da existência. Porém, o posfácio (Notas sobre “Matteo perdeu o emprego”), ao querer dar-nos uma interpretação sobre os acontecimentos, frustrara parte do caminho que eu até ali percorrera. Senti-me aquela aluna que faz batota e procura a solução do exercício antes sequer de o tentar resolver. Não que estas notas não sejam importantes, mas ainda assim preferiria ter feito esse trilho sozinha.

Melanie Alves*

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com

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