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De Salamanca a Lisboa, verso e reverso

Tresler

1.Salamanca. Convento de Santo Estêvão. Os lugares onde vamos ajudam-nos a situar-nos melhor relativamente àquilo que nos rodeia e são simultaneamente um espelho frontal onde nos vemos e um retrovisor que, ao focar o passado, nos faz traduzir o presente. Uma exposição neste sítio carregado de história vai chamando a atenção para aquilo que já no séc. XVI os frades dominicanos (os “padres pregadores”) defendiam como ideia básica para os índios da América, antes ainda do nosso Padre António Vieira: a ideia de que os índios também eram gente e de que a ocupação da América não podia ser feita a qualquer custo.

A “realpolitik” era outra coisa: apesar das proclamações, no terreno os padres só conseguiam servir de travão no avanço pelas terras novas e na destruição do índio, travão quase sempre “a posteriori”, ou seja, já depois dos factos consumados, destruição e extermínio.

2.Alba de Tormes. No Convento das Carmelitas fundado por S. Teresa de Jesus, a cela onde a freira das visões morreu lá continua, agora reconstituída com a imagem da santa deitada a dormir o sono eterno. No túmulo por cima do altar-mor da igreja, o corpo incorrupto, dizem, fechado a dez chaves entregues a outras tantas pessoas, para ninguém abrir a urna. De cada lado da urna, a cultura das relíquias em invólucros de vidro: o braço direito da santa com aspeto de múmia e o coração quase indistinto. Teresa morreu em 1582 ao voltar para Alba de Tormes a pedido da duquesa de Alba para consolo na sua doença, mas é ela que acaba por morrer poucos dias depois no convento que fundara. Sendo uma freira despojada, acabava, pela projeção da sua obra, por se relacionar bem com a aristocracia das cidades.

Santa Teresa tinha visões, êxtases, encenava mentalmente o casamento com Cristo, como na mensagem final a poucos momentos da morte, em que anseia por encontrar “o seu esposo”. Antes de ver estas visões reconhecidas pela hierarquia teve de suportar as acusações de pacto com o diabo. Pelo meio a imagem de uma mulher mal aceite por ser inteligente, por pensar e ousar exprimir as suas ideias. Uma mulher em tempos de homens que, a seu tempo, verá algumas obras suas integradas no patamar da “literatura espanhola”. Curioso que fosse neta de judeus “conversos”, isto é, obrigados a converter-se nos tempos prévios ao édito dos reis Católicos (1492). Naqueles tempos não era suposto Teresa falar disso nem revoltar-se contra isso.

3.Béjar, Museu Judaico. É sobre uma superfície de vidro com o buraco de um poço à vista que vemos o vídeo inicial da visita a explicar o édito dos reis Católicos em 1492. A guia compara a atitude dos judeus de fingirem a conversão e de arriscarem o culto judaico após a “conversão” com a metáfora “caminhar sobre cristais”. O rei português D. Manuel I, que casou com duas filhas dos reis de Espanha, embora andasse primeiro a tentar converter os judeus e depois a obrigá-los a converter-se, acaba por demorar apenas 5 anos para lançar um édito idêntico em 1497, fazendo às vezes vista grossa da falsa conversão e dando mesmo um período de 20 anos em que os cristãos-novos não seriam inspecionados na sua fé, isto para permitir alguns anos de adaptação aos “conversos”.

Muitos dos expulsos espanhóis vêm para Portugal mas muitos mais para as cidades italianas, o centro e o norte da Europa e Marrocos. Os que ficam por cá acabam por ser mal recebidos na maior parte (“Já não chegavam os que cá tínhamos”). É a sina de um povo que não cede na crença que herdou e que, por via da usura e da cobrança de impostos para o rei e de uma vida assumidamente de gueto, acaba por criar os maiores ódios, obrigando o rei a enquadrá-los, a defendê-los e protegê-los, isto é, isolando-os ainda mais.

4. Lisboa, Rossio. O lugar é aqui, junto ao atual Teatro D. Maria II, onde se levantaram as piras de corpos, alguns vivos, para serem queimados os falsos conversos judeus. Na matança de 1506 (entre 2.000 e 4.000 judeus mortos pela populaça em Lisboa) os mesmos padres pregadores dominicanos que na América espanhola seriam advogados dos índios eram agora em Lisboa os amotinadores que taxavam os judeus de causadores da doença, da fome e da guerra. Na altura foi a “evidência” de um “milagre” não reconhecida por alguns cristãos-novos que desencadeou a fúria. Das atrocidades que em três dias se cometeram (o Terror instalado nas judiarias por esquadrões de matadores) o rei, ausente em Abrantes por causa da peste, prometeu vingar-se para, depois de algumas execuções, grande parte dos criminosos ficar por castigar. A rainha, filha dos reis Católicos, foi amaciando a sede de justiça do rei. E rapidamente o mesmo rei D. Manuel solicita a instauração da Inquisição, que só chegará entretanto no reinado seguinte.

Fica uma pergunta ajustada aos tempos de hoje: até que ponto é que podemos pedir a um povo orgulhoso de si próprio que se deixe diluir na cultura dominante de quem o recebe?

(“O massacre dos judeus”, de Susana B. Mateus e Paulo M. Pinto,1ª ed. 2007)

Por: Joaquim Igreja

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