Após ter sido laureado com o Nobel fiz mais de 2000 quilómetros (ida e volta) para ouvir, ver e estar com Günter Grass; e como a minha boa estrela sempre se confirma – de resto cada vez mais –, tive o privilégio de o ouvir sentado durante todo o tempo. Aliás, ainda hoje guardo – e guardarei – o quadradinho de cartolina com o número 29, que foi o que as fundas gentileza e intuição alemãs me propiciaram.
A posição em que me encontrava não era particularmente favorável a observá-lo (a maioria dos presentes eram alemães e as suas compleições não são propriamente as de um português). Ainda assim, pelas observações do lugar e – sobretudo – durante a sessão de assinaturas das suas várias obras a um público numeroso, dadas a proximidade física e a demora da sessão, tudo isso me permitiu – claramente – concluir que Grass vivia inquieto, com um segredo profundo, profundamente incómodo para ele, o qual, ademais, o tornava densamente idiossincrásico no trato – ao menos em certas ocasiões. O fino leitor já entendeu que estou a discretear.
Essa inquietude, num nativo de signo “balança” (conhecimento a posteriori), é ainda mais eloquente.
O esclarecimento da perplexidade iria surgir-me vários anos depois, precisamente em 2006, quando, em trânsito de Estugarda para Augsburgo, numa área de serviços, comprei Der Spiegel (a capa e o interior, como já aqui disse, comentavam o facto de o autor, nos verdes anos da primeira juventude, ter integrado as SS).
Mesmo que haja alteridades impossíveis, no tocante à sua confissão Grass fez bem (já aqui o escrevi um dia).
De cada vez que Grass publica um livro irrita os alemães, já vi escrito – e este, precisamente, é que pretendo como ponto de partida destas notas com o meu estimado leitor.
Se há alteridades impossíveis (alteridade: pormo-nos na pele do outro, digamos assim) o que não é possível, legítimo, é irritarmos os outros, porque, a ser assim, o mundo tornar-se-ia num inferno.
E, sem querer eu tomar outra atitude que não seja a de cultivar bons pensamentos, não posso, todavia, deixar de avançar com o que seja, porventura, um motivo de meditação para todos.
Num livrinho (livrinho porque se lê breve e por sentir por ele todo o carinho, nos antípodas, portanto, da depreciação) de extrema qualidade, O Império Alemão, editado pelo Círculo de Leitores, um historiador de gabarito, que, dentre mais, é Professor Convidado em Harvard e na Sorbona, declara logo na página 5: ” Para a maioria dos Alemães, a História, tanto quanto a memória lhes permitia recuar, era uma horrenda sequência de catástrofes, em que os territórios alemães pareciam desempenhar o papel de tabuleiro de xadrez em tempo de paz e de campo de batalha em tempo de guerra”.
E linhas breve mais abaixo: “Quando a paz finalmente chegou em 1648 [final da “Guerra dos Trinta Anos”], dois em cada três habitantes dos territórios germânicos tinham morrido, ora vítimas de ladrões e soldados (…), ora de fome ou de peste”.
O autor é Michael Stürmer e este livro é obrigatório para o meu estimado leitor, seja o homem comum, o economista, o engenheiro, o médico, o professor (Primário ou de Liceu), o psiquiatra… Não é preciso gostar, ou não, da Alemanha – eu gosto muitíssimo – ter por lá viajado, ou não. E é obrigatório por sabermos melhor o que é a França e concluirmos por que caminhos anda a intelectualidade lusa (a obra em apreço está agora à venda por preço irrisório, porque a editora, obviamente, não a vendeu como esperava).
Ora, conhecerá Grass, bem a fundo, a própria História da realidade cuja unificação política se fez apenas com Bismarque? Saberá Grass que o Tratado de Versalhes, cuja suposta finalidade era garantir a paz, foi, isso sim, um fautor de guerra, porque a França não vê além da estreiteza do puramente imanente? Sem rebuço: não obstante tudo o que ao gauleses se deve, o facto é que, no fundo (e desculpas a eles) não passam de uma plebe ruidosa – o que se avantaja, agora mesmo, cada vez mais, ao menos dotado dos viajantes e/ou leitores.
Quando a maior vidente mundial – que o Bild (o jornal de maior tiragem na Alemanha) louva eloquentemente – a única, que eu saiba, recebida por um Papa, Maria Duval, perdoa aos alemães, ela que é francesa, colaborando com uma empresa alemã (vd. Dica da Semana,o jornal da LIDL), por que é que Grass não perdoa a si próprio e aos alemães?
Escreva nesse sentido, meu caro Günter Grass. “Descascar a cebola” não. Com o meu forte abraço.
Guarda, 26-XI-07
Por: J. A. Alves Ambrósio