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Covilhã, intra e extra-muros

A douta elocução com que Michael Mathias abriu a “transurbância”, a mais recente iniciativa promovida pelo Movimento Cidadania Covilhã, aclarou o desempenho do muralha da vila na aglutinação dos núcleos das Portas do Sol, da Ramalha e do Castelo e esclareceu as implicações deste perímetro no desenvolvimento urbano ulterior. Posteriormente, o grupo de participantes pôde reconhecer no terreno a informação arqueológica avançada, cruzando-a com as conjecturas decorrentes da observação e discussão colectiva que o percurso suscitou. A relação entre o passado medieval e a contemporaneidade ganhou consistência crítica face ao diálogo, apropriação, exclusão ou coabitação dos signos de distintas épocas. O aspecto que mais nos desgostou foi a opção pela “tabula rasa” recentemente seguida pela Câmara neste núcleo.

As demolições massivas constituem problemas complexos em qualquer cidade. A primazia viária não serve de critério para manter ou demolir edifícios, muito menos como motivo de interesse público de expropriações cuja finalidade real se ignora. Perceber a cidade como Património implica descentrar o olhar do “monumento” e considerar o tecido edificado como uma totalidade, um corpo com interdependência orgânica que não prescinde das suas células e artérias. O principal valor do centro reside no conjunto, enquanto cadastro e memória capaz de prenunciar o projecto. Qualquer metodologia de intervenção pública sobre a cidade deve partir, portanto, de uma premissa qualitativa, isto é, constituir uma obra modelar que instigue e aperfeiçoe os critérios de exigência dos particulares (o exemplo deve vir de cima!), em vez de os desmoralizar. Nas cidades onde o centro foi destruído – o Pelourinho é bom exemplo – nunca se soube como tapar o “buraco”.

Na Covilhã, tanto o edificado de raiz erudita quanto o de feição modesta que nasceu adossado ou no interstício dos panos da muralha, mais do que uma apropriação do espaço, testemunham o desejo de ser urbano, princípio cívico cujo reconhecimento deveria nortear a política arquitectónica municipal. O direito à cidade nem sempre foi pacífico. O tecido urbano da Covilhã é um dos que melhor inscreve os ritmos e as tramas da segregação social moderna. O seu desenho revela a presença das diversas escalas e funções (da fábrica à casa) e os critérios de (des)ordenamento, documentando que agir sobre o espaço urbano e o território equivale a agir sobre os modos de vida. Razão suficiente a favor da sua conservação.

A cidade é arquitectura, no sentido em que não concerne apenas à construção. É arquitectura quando compreende um simbolismo, uma função e uma ética política na sua forma. Por isso, antes de ideal, a cidade é o lugar da imaginação. Se o projecto é indissociável da edificação do espírito (Alberti), não poderemos entendê-lo desprovido de qualidade arquitectónica nem de espaço público, enquanto lugar de encontro e de aprendizagem cívica. Porém, diz Argan, “uma das principais contradições do nosso tempo está no facto de que as forças políticas progressistas tendem a conservar e as forças políticas conservadoras tendem a destruir o tecido histórico das cidades.” No momento em que se reconhece a forma da cidade, a raiz funcional articula-se com a orgânica cultural e simbólica, que dá ou retira prestígio. Porque as decisões políticas se repercutem na estrutura física da cidade, era bom que as autarquias deixassem de agir como agências de promoção imobiliária e desenvolvessem outra acuidade.

A deambulação promovida pelo MCC ofereceu-nos uma viagem no tempo à cidade e às suas margens. A legibilidade dessa estrutura distingue a cidade concreta dos simulacros turísticos (e.g., aldeias históricas), na medida em que desvela o seu lastro. Já na época de Homero, as viagens de Telêmaco ao Egeu demonstram que a cultura era, acima de tudo, o conhecimento das cidades.

Por: Francisco Paiva

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