Faz parte da democracia que em noite de eleições se preparem bandeiras e restante parafernália para sair à rua e comemorar a vitória. Faz parte da democracia que haja vencedores e vencidos, os que saem e os que entram, de tal forma que é tentador ver na cenografia das noites eleitorais a essência da política.
Mas por muito que o cidadão em geral não goste ou despreze, a política é mais isto: a procura de entendimentos complexos e de uma base alargada para governar um país. Tudo é mais fácil quando a vontade da cidadania se expressa de forma maioritária em favor de um programa político. Contudo, nos tempos que correm, a fragmentação da opinião sobre os temas cruciais para o futuro da sociedade não favorece a obtenção de consensos. Por isso mesmo, também se tornou muito difícil responder imediatamente à questão central da noite de 4 de outubro: quem ganhou as eleições? Podem contar-se os votos e os mandatos, invocar-se coligações formais e informais a partir dos púlpitos dos comentadores, mas nada disso conta porque as eleições não são futebol, mera contabilidade de golos, e a política começa realmente no dia seguinte, quando votos e mandatos têm de expressar-se em capacidade de governar.
O desconforto que estas eleições trouxeram é que, pela primeira vez desde 1985, a resposta à questão central de todos os sufrágios – quem ganhou? – foi tudo menos inequívoca e o partido ou força mais votada não alcançou, por si só, a cota mínima de poder para pôr em prática o seu programa.
Nesta circunstância, faz parte da cenografia política reclamar a vitória e a legitimidade de governar, excluindo as demais possibilidades permitidas pela Constituição. Quando a vitória é clara, não faz falta reclamar nada; a solução governativa impõe-se naturalmente aos diferentes atores políticos. Ao contrário, a noite de 4 de outubro mostrou imediatamente que regressou à política portuguesa a contenda prévia sobre quem tem legitimidade para governar, com base nas diferentes aritméticas do sufrágio. Uns acharão isto deplorável, quiçá o sinal da degradação de uma democracia feita de jogos de bastidores; contudo, os últimos 10 dias têm sido pródigos em política pura, naquilo que faz da política o que ela é: o debate e a procura de consensos.
Neste contexto, e a duras penas – porque a um escasso mês das eleições ainda era dado como vencedor –, António Costa acabou por se ver no centro da nova configuração política em Portugal. Na noite eleitoral, ainda todos achavam que o chamado “arco da governabilidade” não se moveria e que Costa se veria obrigado, convenientemente, a viabilizar um novo governo de centro-direita. Claramente contudo, qualquer coisa está a mudar à esquerda que promete transformar as possibilidades de governar em Portugal, se não já agora pelo menos a médio prazo. A disponibilidade dos partidos à esquerda do PS para apoiar um governo liderado por Costa deixa este sem álibi. Se por um lado foi confrontado com o desejo genuíno de negociar um governo de esquerda, por outro isso dá-lhe mais capacidade de negociação com PSD e CDS. Se até aqui governar era coisa do PS em direção à sua direita, o momento presente começa a evidenciar que governar pode ser coisa do PS em direção à sua esquerda, o que representa desde já um alargamento da política em Portugal.
Dito isto, é preciso reconhecer que o papel que está reservado a Costa no novo ciclo político – papel que parecia esgotado na noite de 4 de outubro – depende menos da sua vontade do que da mudança de posicionamento político – alguns dirão histórica – dos partidos à sua esquerda. Muito se escreverá e debaterá sobre este fenómeno nos próximos tempos, mas certamente a ascensão do Syriza como partido de governo na Grécia veio alterar decisivamente a conceção do BE e PCP sobre que tipo de partido podem e querem ser na política em Portugal e o que pretendem fazer com o peso que alcançaram nas urnas.
Por: Marcos Farias Ferreira