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Continuamos a andar à roda…

Sobre o argumento de “reabilitação urbana”, a colocação de estatuária em rotundas rodoviárias é uma das estratégias prediletas do presidente da Câmara da Guarda. Havendo um certo horror ao vazio, a rotunda presta-se de imediato a que seja colocado qualquer coisa no seu centro. Um fetiche já antigo que é comum à maioria dos municípios portugueses.

Esta prática é uma estratégia política que carece de desenvolvimento cultural e urbano. Priva a participação ativa, o diálogo e a perceção sensorial do espectador com a obra, que acaba por dilui-la na banalidade do trajeto quotidiano. Uma obra de arte colocada numa rotunda tem que competir em presença física com uma enorme quantidade de objetos urbanos, o que faz com que peças de arte, mesmo quando bem executadas e com indiscutível valor estético, pareçam inoportunas ou inapropriadas para o local.

Se queremos continuar a denominar estas obras de: arte – e pública, entenda- se que estas deveriam implicar uma relação diferente com o espaço. A arte pública deve privilegiar o lugar do espectador, tornando a sua perceção sensorial e participação numa parte fundamental da obra assim como o próprio espaço envolvente. Continuamos a andar à roda… até enjoar.

A arte pública é um elemento crucial de uma cultura e de uma educação artística e social que promove a aceitação da pluralidade de formas de pensar proporcionando um sentimento de estima, valorização e apropriação entre os habitantes. É um direito social e uma consequência do direito à cidade. Por cá, parece limitar-se a uma prática antidemocrática e geradora de discórdia no corpo social.

Numa altura em que a despesa pública é bastante discutida, os motivos de descontentamento por parte dos guardenses são também económicos. É uma estratégia supérflua que não corresponde às necessidades dos cidadãos. O encargo de obras de arte pública encontram-se por vezes tão burocratizado ou viciado pelo clientelismo eleitoral que os critérios para a seleção de artistas, para os procedimentos de adjudicação da obra, o seguimento de projetos, o controlo da execução e até mesmo o ato inaugural, conduzem a uma infinidade de procedimentos aleatórios ou de irregularidades.

O que se diz uma estratégia de desenvolvimento urbano por vezes é também uma estratégia de campanha política. A reconstrução de rotundas influencia a dinâmica da cidade, é uma mudança palpável e visível que, mesmo quando não sendo a mais eficaz, é contudo uma mudança – um aspeto crucial nas cidades mais pequenas. Os autarcas procuram o efeito imediato sobre os cidadãos e a cidade criando assim uma ideia ilusória de progresso.

Todo o poder político tende a monumentalizar a sua ideologia e a Rotunda do Cristal é isso mesmo.

Mudar a imagem gráfica é a maneira mais simples e barata de mostrar trabalho. Não é preciso fazer muito para tudo ficar diferente, desde que o que se faça seja sempre assinado. Basta circular um pouco pela cidade para perceber que a estratégia de comunicação do nosso município é bastante invasiva e assemelha-se à das marcas comerciais. Atinge o seu auge quando se materializa numa peça escultórica que se impõe no espaço público. Alguém está a querer dizer que chegou para ficar.

Não chega defender-se estas obras dizendo que se trata de uma questão de gosto. A arte sempre foi encarada com subjetividade no seu julgar estético, mas vista à luz da cidade e do ambiente urbano levantam-se outras questões que ultrapassam o campo da subjetividade e que são de ordem política. Quando se trata de planificar/construir a cidade e alguém promete “Fazer obra, custe o que custar, gostem ou não” recorda-me um tipo de discurso autoritário característico das sociedades tradicionais.

A arte-como-coisa-pública deve ser um incentivo à participação dos cidadãos, à aceitação da pluralidade de formas de pensar, à aceitação das diferenças e ao exercício de cidadania. Deve implicar um conjunto complexo de sujeitos intervenientes desde o momento da sua produção. Sem esquecer os cidadãos locais. Promover a participação do público e apresentar-lhes resultados de trabalho potência a pertinência da obra, auferindo-lhe significado para a comunidade e identificando-a com os valores locais que reforcem e promovam a identidade da cidade.

João Ribeiro, carta recebida por email

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