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Congresso. Dissidência. Guerrilha

Theatrum mundi

Tem dado pano para mangas o último congresso do Partido Socialista. No ano de (quase) todas as eleições, o partido no poder encenou o encontro magno da sua estrutura política sem deixar ao acaso o mais pequeno dos detalhes. Tudo foi dissecado ao pormenor por jornalistas e comentadores que vivem tanto destes momentos como os próprios partidos e os seus dirigentes. E não há nada como um bom congresso partidário para pôr a mexer os meios de comunicação. Vivem-nos como uma antecipação do momento eleitoral, como ensaio geral para esse momento supremo da crónica, do comentário e da análise. É como se, até às eleições legislativas, a comunicação social fosse criando e dramatizando um crescendo empolgante em torno da coisa política e dos políticos. Um congresso permite usar e abusar do directo, fazer a entrevista oportuna, especular sobre cenários alternativos, descobrir o protagonista inesperado, empolar o episódico que só ele torna visível a ‘província’ política – fulano cantou e vinha das ilhas; sicrano declarou o seu amor incondicional ao grande chefe e vinha do Norte, e também era pedreiro e presidente da junta… Um congresso é um desafio para as televisões à procura do exclusivo; à procura de mostrar toda a eficiência dos meios humanos colocados no terreno; à procura do comentário mais convincente e informado; à procura da última hora, esse supremo instrumento de captação do olhar do praticante de zapping.

É verdade que um partido de militantes é uma criatura política muito diferente de um partido de quadros, e que em Portugal todos se transformaram em partidos de eleitores, com uma base ideológica cada vez mais difusa e instrumental. Não sei se podemos esperar que um congresso seja o momento para a discussão de ideias, projectos e alternativas num partido de eleitores, que está no poder e, ainda por cima, num ano de eleições. Toda a comunicação social clama pelos congressos à moda antiga, onde as coisas – dizem – não estavam arranjadas de antemão, onde o espectáculo estava garantido e as reviravoltas asseguradas. Em Espinho, o faro para a política e o estado como mais uma forma de espectáculo deixou os jornalistas com vontade de algo mais, de um espectáculo de outro tipo, mas parece não perceberem que não são eles os únicos a ditar as regras do espectáculo. Não gostaram do que foi montado pela máquina socrática, ajustado ao milímetro, sem surpresas nem reviravoltas dramáticas. Parecem não perceber que quanto mais impacto tem a sua operação mediática, mais os políticos e os partidos têm a ganhar e a perder e mais cautelosos se tornam todos: “Se as regras são as do espectáculo, então que sejam as escolhidas por mim” – parece querer ripostar Sócrates num momento de especial tensão com os meios. Parece circular uma certa nostalgia face aos políticos de antes, mais autênticos e mobilizadores – dizem –, tocados pelo momento mágico e fundador da democracia, do regime. Parece o caso de dizer que estes podiam dar-se ao luxo de fazer política sem reparar no espectáculo montado à sua volta… E hoje? Bom, hoje é preciso políticos mais profissionais… mais capazes de ludibriar os jornalistas e os seus meios, de estar atentos aos seus artifícios.

Então um congresso é para quê, afinal? O de Espinho foi uma encenação para criar uma imagem útil no ano de todas as eleições. Houve palco, púlpito, audiência e mediação para os que não podiam lá estar; os estatutos ainda são o que eram. E até a dissidência percebeu que não ia lá fazer nada. E não foi; ficou a esticar a corda. Percebeu que este congresso não era o momento para dissentir; que há outros instrumentos e mais eficazes. Com o congresso esvaziado da sua função tradicional, eis que a dissidência assumiu toda a sua vocação de guerrilha. E é exactamente como guerrilha interna que a facção Lello parece tomar a facção Alegre, sem já o poder esconder, enquanto esta se queixa da tentativa de purga por parte daquela. O congresso pode ter sido demasiado asséptico para o gosto da comunicação social, mas não há que desesperar; é garantido que o drama vai agravar-se proximamente, nas páginas dos jornais e nos fóruns de rádios e televisões deste país.

Por: Marcos Farias Ferreria

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