Arquivo

Cidade Rádio

Jogo de Sombras

O tango de Francisco Canaro é um adeus sentido às planícies de terra amarela da Argentina. A melodia chorosa faz lembrar o nosso fado, o que tem lógica: é provável que ambos os géneros encontrem raízes na tradição celta, supondo-se que os escravos africanos a tenham transportado para lá do Atlântico, de onde regressou à Europa já na primeira metade do século XX como novidade dançável e sensual. «Adiós, Pampa Mia» é de 1946 e também trina o começo de uma aventura que percorrerá o sonho e a esperança. É, apesar de tudo, menos fatalista do que o fado cantado. Talvez esse tenha sido o motivo: a opção pela confiança no lugar do desalento; da ousadia em vez do desengano. A 29 de Julho de 1949 foi este tango de Franciso Camaro com arranjo de Mariano Mores que rodou num vinil de 78 rotações editado pela londrina «The Parlophone» pela primeira vez, oficialmente, na Rádio Altitude. Assim o testemunha a velha placa exposta, juntamente com o disco original, no «Átrio da Memória» da Casa da Rádio. Estudos recentes – e respeitáveis – de Hélder Sequeira, anterior director e agora dedicado Provedor do Ouvinte (uma figura inédita na rádio em Portugal, instituída sem obrigação legal, no pressuposto assumido de que cometemos muitos erros mas tentamos não cair no pior de todos, que é nunca reconhecê-los nem corrigi-los), concluem que em 1948 – ou mesmo antes – a rádio já existia e transmitia. Como resolvemos esta aparente contradição documental? Não resolvemos, porque não há nada para resolver: a Rádio Altitude completará 60 anos na próxima terça-feira, 29 de Julho; e tê-los-á na mesma data em 2009. É uma Senhora respeitável, de espírito jovem e arejado, a quem não se deve perguntar a idade. Pelo mesmo princípio venerável a rádio não organizará agora nenhuma grande festa. A própria cidade far-lha-á daqui a poucos meses, evocando-a – e evocando-se. Porque uma cidade que tem na sua memória o facto de ser pioneira na radiodifusão sonora deve celebrá-lo. E vai celebrá-lo, no dia em que também se celebrar como cidade. A rádio, em contrapartida, irá esforçar-se por continuar à altura da celebração, tentando sempre surpreender com novas causas, novas abordagens e novos intervenientes. A melhor característica do recente mas intenso percurso da equipa que me honro de integrar tem sido, precisamente, a constante reinvenção. E os sinais de aceitação, retorno e credibilidade – que surgem continuamente e consolidam a sexagenária mas regenerada Rádio Altitude como órgão de comunicação social de referência – robustecem a nossa responsabilidade e desafiam incessantemente a nossa imaginação. Há quase cinco anos que tenho o privilégio de liderar, no plano operacional, um notável grupo de trabalho. Conto, a montante, com a confiança exigente e com a solidariedade atenta de uma estrutura empresarial. Partilho os dias, nesta exaltante aventura, com amigos e colegas que se destacam pelo profissionalismo e pela vontade de alcançar os objectivos que em conjunto nos propomos. E tenho como inestimável o contributo de um grupo de mais de trinta cronistas, comentadores e autores ou colaboradores de programas temáticos. Alguns também com um lugar merecido na história da rádio em Portugal, como o «Escape Livre». Poder contar com a participação de tantos cidadãos – de diferentes sensibilidades profissionais, sociais, cívicas e políticas – é uma distinção para a rádio; cruzar quotidianamente tão plurais pontos de vista acerca das nossas coisas e das nossas causas é um legado para a cidade e para a região. Vivemos na rádio um desusado ambiente de auto-estima, é verdade – umas vezes a raiar a hipérbole e outras a causar simplesmente inveja. Mas somos assim: já bastou o que bastou. Só não desejamos fazer uma rádio perfeita. Mas também não queremos conformar-nos com a rádio realizável. Nem com a cidade possível. Afinal de contas, a vida não é a feijões. Pelo menos para alguns dos que escolheram cá viver e trabalhar.

Por: Rui Isidro

Sobre o autor

Leave a Reply