Várias interpretações têm sido feitas sobre estes dias de turbulência política e institucional. Não menos variadas as confusões a propósito.
1- O Presidente da República indigitou Passos Coelho como primeiro-ministro. Fez bem. Indigitou o líder da força mais votada e respeitou uma regra não escrita na Constituição – que não é britânica e não é não-escrita – resultante da jurisprudência de 40 anos de democracia. O argumento, repetido à exaustão, de que as formalidades contam em democracia já cansa. Mas não está estafado.
2- A queda do próximo Governo PSD/CDS não será um golpe de Estado. Será a democracia representativa e o sistema parlamentarista a funcionar na plenitude. E também será perfeitamente constitucional que Cavaco Silva não dê posse a um Governo apoiado por uma maioria parlamentar de esquerda, tal como deixou subentendido. Mas como notou São José Almeida, no Público, o Presidente da República não é um mero administrativo. É eleito por sufrágio directo precisamente porque, em dado momento, os eleitores consideraram que determinada pessoa é a indicada para assumir a posição cimeira do Estado. E a reboque dessa escolha vêm as virtudes e defeitos do indivíduo. Ideologia ou deformação ideológica. Também Mário Soares, por razões pessoais, rejeitou um Governo PS apoiado pelo PRD e pelo PCP, abrindo via à primeira maioria absoluta de Cavaco.
3- Mas se se deve respeitar a convenção constitucional de indigitar quem vence, também deve respeitar-se a ideia de que o Presidente deve agir como moderador das relações políticas. Cavaco devia ser Presidente e não Capela. Tem direito às suas convicções políticas, só não pode impô-las a uma maioria de eleitores que acabou de escolher como representantes (maldita democracia!) deputados que querem mudar de rumo. Eleitorado que percebeu que o Muro caiu há muito, que o PCP já não é internacionalista, mas nacionalista e identitário, e que, desde então, os tenebrosos comunistas já governaram em muitos sítios além de Cuba, como França e Dinamarca.
4- Está em vias de se formalizar uma maioria absoluta assente em partidos de esquerda. Que têm o direito democrático e constitucional de se entender para assegurar uma solução governativa. Que só o tempo poderá dizer se estável e duradoura. Se Cavaco se contradisser, viabilizando um Executivo de esquerda, respeitará os eleitores e poderá ficar para a História – a única variável que tem sempre presente – como aquele que tudo fez para evitar a calamidade.
Porém, se não viabilizar tal solução estará a incumprir a convenção do respeito pela democracia representativa do nosso sistema parlamentarista. Ostracizará 1 milhão de portugueses que votaram em partidos que têm o direito democrático de querer sair do euro, da NATO ou, pior, até mesmo de rasgar o prezado Acordo Ortográfico. Mas deixará o país com um Governo de gestão em duodécimos governado, em muitas áreas, pela Assembleia… de esquerda. E aí sim os mercados falarão. Nessa altura Cavaco até poderá querer dizer que tinha avisado: mas já ninguém o ouvirá.
Por: David Santiago