Arquivo

Camas para homens e mulheres

Num almoço de Natal de um grupo de mulheres feministas, alguém às tantas evocava, num riso cortado por um travo de melancolia, os tempos felizes em que era, no seu dizer, “uma boa cama”. Logo uma outra voz se ergueu como um muro: “As mulheres não devem usar essas expressões primárias tomadas de empréstimo ao léxico masculino”. Respirei fundo, pensei três vezes no meu mandamento experimental de mulher madura (“Não responderás impulsivamente”), lancei os olhos para a janela e apaixonei-me de novo pela beleza estarrecedora de Lisboa, casario e Tejo e tudo, ali aos meus pés. Quando dei por mim, entontecida de felicidade pela redescoberta do meu amor louco pela minha cidade, já tinha respondido que sermos livres é podermos escolher o léxico que quisermos e que não percebia para que tinham andado as feministas a labutar tanto se afinal o gozo de falarmos de bom sexo, com mais ou menos primarismo, fantasia ou presunção, continuava interdito. Acho que ainda acrescentei o meu estribilho habitual: “Não foi para isso que se fez o 25 de Abril”. A paixão acelera-nos os níveis de impulsividade e sucede que os meus já nasceram altos. É-me difícil refrear o hábito de dizer o que penso. Tenho-me treinado para o dizer com um recuo de tempo que me confira uns fumos de respeitabilidade, porque entre os mitos urbanos da nossa civilização refulge esse que associa as poucas palavras, e pronunciadas com um ar densamente meditado, a inteligência e saber. Em geral, os homens são melhores no uso deste mito do que as mulheres. Por duas razões: em primeiro lugar, porque foram eles que o criaram, e em segundo, porque têm sido educados para pensar em menos coisas e mais devagar. As menos coisas em que os homens são treinados para pensar são simples e seguras: eles próprios, e os seus interesses particulares. A vantagem política e social desta educação é óbvia, mas o preço a pagar por ela é altíssimo: as derrotas deles são pesadas e solitárias, a possibilidade de uma mudança estrutural aterradora, os apoios emocionais escassos e a capacidade de pedir socorro muito diminuta.

Sucede que a maioria das coisas não é simples nem segura e por mais que evitemos pensar nelas, elas acabam por vir ter connosco, embrulhadas e inseguras, com ar de mulher. Por isso os viúvos sobrevivem muito menos do que as viúvas, os aposentados se deixam encarquilhar diante da televisão até à morte e as taxas de homicídio masculino são muito maiores do que as femininas. Por causa do mito da concentração monotemática, e da solidão epidémica que ele convoca. As mulheres são treinadas para tomar as dores dos outros, o que não só as alivia das próprias como as conduz a interrogações permanentes, em catadupa, sobre o que são, o que sentem, o que querem, além do que é esperado delas. Agustina Bessa-Luís disse várias vezes que o facto das atenções e esperanças da família se concentrarem no seu irmão foi péssimo para ele e extraordinariamente libertador para ela que, na sua invisibilidade de menina pôde observar com minúcia as vidas alheias e inventar para si mesma um destino singular.

O feminismo poderia libertar os homens, se as mulheres deixassem. Agarram-se a ele como coisa delas, do mesmo modo que eles se agarram ao poder como coisa deles, e se protegem, e se entrecitam, e se disputam e se elogiam uns aos outros para se sentirem importantes, que é o seu modo específico de se sentirem vivos. O mundo lá vai mudando, apesar da repetição automática dos gestos humanos; os pais de hoje, à força do divórcio ou do medo dele, descobrem a alegria sublime do amor pelos filhos. É cada vez mais frequente encontrarmos homens prostrados de amor diante dos filhos, de um modo outrora considerado feminino – nos filhos despejam o carinho que não receberam e não souberam dar, com os filhos ensaiam a intimidade que não aprenderam a criar com amantes ou amigos, com os filhos descobrem, extasiados e amedrontados, que o coração pode ser um lugar luminoso. À revelia dos discursos e do aparente sossego das classificações vetustas, os papéis de mãe e pai contaminam-se, invertem-se, recriam-se. As mães tornam-se a imagem da ordem e da exigência, os pais transformam-se em colos quentes e transigentes – e nada disto é fixo, nem linear, porque a casa e o mundo estão imbricados de uma forma, também ela, nova e em mutação: quando o desemprego sobe escuta-se no espaço público a velha canção da importância da maternidade a tempo inteiro. São os homens quem precisa agora do feminismo. Para conseguirem a longevidade estereofónica das mulheres. É uma questão de impulso, e de verdade.

Por: Inês Pedrosa

Sobre o autor

Leave a Reply