Arquivo

A pedra

Bilhete Postal

Aquela pedra que o Jorge atirou da janela era um ícone lá em casa. Uma pedra da calçada, aproximando-se do cúbico, com arestas definidas, pintada à mão pelos pequenos dedos do Renato. O miúdo pintou-a com guache na escola e depois foi envernizada. Viera no dia do pai. Uma inscrição com letras infantis dizia – gosto muito do meu pai porque joga à bola comigo – e por estas muitas razões de afecto, o calhau foi pisa-papéis. E calhau que sobe assim na vida tem de ser acarinhado. A pedra, como dizíamos antes, nunca foi pedra, era o trabalho do Renato, era a prenda do menino, era um pisa-papéis e chegou a ser artesanato. Assim vivia o calhau entre secretárias, mãos delicadas, gestos carinhosos e lá servia para evitar o espalhar das folhas se lhes dava o vento. O Renato cresceu tanto que não cabia nas portas de casa, pesou tanto que fazia a roupa por medida e ganhou cabelos brancos, precisou de óculos, colocou seus dentes implantados e começou a tremer levemente da mão esquerda. O Renato só tinha feito uma peça de arte – o calhau pisa-papéis, pintado a guache e afogado em verniz. Era a sua obra lá em casa até que o travesso do Jorge, filho mais novo do Renato e autor de várias esculturas infantis, autor de três contos dedicados ao dia do pai, brilhante na escola, pegou no calhau e atirou-o da janela. Ia direita a um gato preto que lhe rasgava a bola dos pokemon. Chocou no poste e perdeu sua primeira pintura, raspou no muro que lhe arrancou a segunda e partiu-se ao chegar ao chão desfazendo a obra-prima. Choraram e carpiram as velhas que recordavam o menino homem quando era menino. Choraram as irmãs. Chorou Jorge que não percebia que importância teria a pedra. Aborrecido, disse Renato:

– ora bolas, mas afinal que importância tinha o calhau?

Por: Diogo Cabrita

Sobre o autor

Leave a Reply