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Camaleões e homens de cortiça

Hoje, não se valoriza uma pessoa que se demite ou abdica de um cargo por imperativos de consciência. Hoje, os heróis são aqueles que não saem de cena. Os homens de cortiça que, contra ventos e marés nunca se afundam.

Andamos ocupados a discutir aqueles que surgem sob as luzes da ribalta. Como sempre, esquecemos os que, discretamente, saem de cena. É por isso que Manuela Ferreira Leite e José Pacheco Pereira deixaram de ser notícia. No mundo da hipocrisia reinante, as pessoas intelectualmente honestas surgem como desajustados sociais e toda a sociedade gosta de esconder rapidamente o que não gosta. Um acto de coerência destoa, porque nos lembra friamente que vivemos num mundo de pessoas que assobiam para o ar e permanecem.

José Pacheco Pereira era deputado europeu. Criticou a coligação PSD-PP e coerentemente abdicou do lugar numa lista conjunta destes dois partidos. Outro fosse e daria mil piruetas para ficar. Posteriormente foi nomeado para embaixador de Portugal na UNESCO. O seu nome chegou a ser publicado no Diário da República. Contudo, Pacheco Pereira criticou a reviravolta governamental, a saída de Durão Barroso e a entrega em bandeja do poder a Santana Lopes. Em coerência, uma vez mais, pediu à ministra dos Negócios Estrangeiros para o libertar do compromisso assumido. “Entendi que a minha intervenção activa, escrevendo de forma crítica, implicava, por coerência, que não devia assumir o cargo. Por dois tipos de razões, a primeira é que pretendo falar livremente nos próximos anos, em Portugal, e no exercício de um cargo como o de embaixador de Portugal na UNESCO não o podia fazer; a segunda é que não quero ter qualquer dependência funcional deste Governo, em particular do primeiro-ministro”, afirmou ao jornal PÚBLICO. Com dignidade saiu de cena. Após duas linhas perdidas num jornal, passou à história.

Podíamos ainda falar de Manuela Ferreira Leite, uma mulher controversa mas intelectualmente honesta. Como um cristo governamental, assumiu todos os pecados dos homens. Discretamente, sem alimentar polémicas, saiu do seu ministério com a consciência do dever cumprido – com políticas subscritas pela União Europeia e com o apelo à manutenção das mesmas por parte do Presidente da República. Disse que o processo de sucessão de Durão Barroso configurava um “golpe de estado” e por isso não aceitou ficar sequer sentada no ar condicionado da Assembleia da República, ao lado de tantos deserdados de lugares políticos.

Hoje, não se valoriza quem pensa pela sua cabeça e regula o seu comportamento por valores e princípios. Hoje, não se valoriza uma pessoa que se demite ou abdica de um cargo por imperativos de consciência. Hoje, os heróis são aqueles que não saem de cena. Os homens de cortiça que, contra ventos e marés nunca se afundam. Aqueles que – sempre em nome de grandes valores – permanecem flutuando na crista da onda, com jogos de bastidores, com contorcionismo de ideias, com enorme flexibilidade na coluna vertebral. Os heróis dos tempos modernos são os camaleões que mudam de cor e de pensamento com a velocidades dos títulos de jornais. São como frasquinhos de gente em pó, sempre disponíveis para quem juntar água. Servem em todos os copos, acompanham qualquer guloseima e têm sempre um lugar à mesa do poder.

Por: João Morgado

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