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Benesses, beneficiário e beneficiado

Agora Digo Eu

A recente decisão governamental de terminar com alguns contratos de associação nalgumas escolas continua a beneficiar uma única instituição: a Igreja católica. Esta igreja é dona de quase metade do país, não paga (praticamente) impostos, sendo necessário entender todo este processo numa República que se diz laica.

Com efeito, dando uma vista de olhos pela Lei fundamental, podemos ler no artigo 41º «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado», o que dá para entender que todo o processo civil tem a sua tramitação, podendo o Estado fazer, ou não, acordos com as hierarquias das diversas igrejas.

O Estado é laico, e assim deve ser, o que faz com que as igrejas não sejam incluídas no protocolo de Estado, pese embora tenham na sociedade a sua base de apoio. É talvez por isso que continua a existir um certo fundamentalismo de púlpito, de uma igreja privilegiada, que, julgando-se dona e senhora da verdade e da vida, desbobina arrogantemente argumentos à La Palisse, onde estão incluídas tentativas veladas de manipulação de sentimentos, tentando, por todos os meios, agarrar os espíritos livres e até todos os outros que procuram insistentemente a liberdade, na tentativa de conquistar espaços, entrando por terrenos que não são seus, opinando em processos laico-legislativos e outros da chamada sociedade civil, esquecendo-se, ou talvez não, falar das asneiras e erros históricos que ao longo dos tempos foram cometendo.

Lembrar o tribunal da santa inquisição, os autos de fé, a acusação de conspiração contra o Estado em 1759, dado existir poder autónomo dentro do próprio Estado, as posteriores leis pombalinas de 1767, o decreto de maio de 1834 de Joaquim António de Aguiar sobre as ordens religiosas, os padres pedófilos, a eterna lamúria do pedido de desculpas.

Nos quase 106 anos da instauração da República, recordo o nosso conterrâneo Afonso Costa, que, a 20 de abril de 1911, terminou, em definitivo, com esta promiscuidade de interesses, aprovando a célebre lei de separação da Igreja do Estado: «A partir da publicação do presente decreto, com força de Lei, a religião católica apostólica romana, deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas e confissões são igualmente autorizadas».

Anos mais tarde, 1940, Salazar resolve fazer um acordo com o Estado do Vaticano (então apenas reconhecido como tal pelo ditador Benito Mussolini, através do tratado de Latrão, em 1929), a que chamou Concordata, o que fez com que o bispo católico António Ferreira Gomes afirmasse que a Concordata era clerical e o regime uma ditadura católica.

O papel da Igreja Católica em Portugal é relevante e tem obviamente de ser reconhecido, mas isso não a isenta da aplicação do princípio de igualdade, estando sujeita à crítica, sendo que na revisão da cerejo-salazarenta Concordata feita por Durão Barroso, em 2004, se dê pela existência de artigos perfeitamente inconstitucionais, podendo mesmo acontecer grosseiras interferências em múltiplos processos do Estado e da sociedade civil. Como exemplo, basta referir o artigo 15º sobre a indissolubilidade do matrimónio onde é recordado aos cônjuges «o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». A Igreja Católica é livre de alertar os seus seguidores para o que bem entenda, mas o Estado, representado por Barroso, não tinha que subscrever, por disposição constitucional, pois aí apela-se aos cidadãos que não exerçam direitos que a Lei lhes confere no exercício individual de cada um.

É por isso que uma República laica nunca será esvaziada de valores, assentando em princípios de igualdade e liberdade, não podendo condicionar nada nem ninguém, sendo o Estado confessamente neutro, percebendo-se que o anticlericalismo, segundo Alberto Xavier, assessor de Afonso Costa, «não é perseguição a qualquer confissão religiosa, pretendendo-se proclamar o poder civil pelo espírito de todas as religiões e garantir a liberdade de desenvolvimento de todos os cultos dentro do Estado em plena soberania política e moral».

Sendo a população portuguesa maioritariamente católica, foi de enorme importância a votação no referendo que despenalizou a IVG (Interrupção Voluntária da Gravidez), com derrota evidente para a hierarquia da Igreja Católica. O casamento civil gay e lésbico, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, a implementação da educação sexual nas escolas, a procriação medicamente assistida e a contraceção são direitos reconhecidos pelo Estado, sendo que a discussão sobre a eutanásia, que levará a sociedade a breve trecho votar em referendo, deve efetivamente ser travada e, isto sem esquecer o debate acerca da eventual legalização das cannabis.

Dir-me-ão que são temas fraturantes da sociedade civil. E daí? Não encaixam no processo da cidadania?

Eis assim chegado o momento em que a sociedade terá de assumir outros e novos desafios, pois partindo do princípio que é proibido proibir, e porque a burguesia e a direita são filosoficamente limitadas, não têm qualquer solução seja lá para o que for, é de extrema importância reinventar um conceito que se ajuste aos tempos que correm e isto só pode ser entendido e perspetivado se houver vontade e garantias do términus de milhentos interesses instalados nesta República centenária e (tão pouco) laica.

Sentem-se à mesa e apliquem o sábio pensamento popular “A César o que é de César, A Deus o que é de Deus”, pois é de notar que o esquema que atualmente mantemos só interessa mesmo a uma das partes.

Por: Albino Bárbara

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