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Até que a Morte os Separe

Francisco Esperto, Chiquinho para os amigos, não valia grande coisa mas casou rico. Maria Amélia, a sua namorada, via nele possibilidades. Acreditava que, ao longo do tempo, iria conseguir burilar os aspectos “menos conseguidos” da sua personalidade e fazer dele um grande homem. E para além disso era bonito. Acreditava tanto nele que, contra a opinião dos pais e de boa parte dos amigos, casou em comunhão geral de bens.

Maria Amélia era católica e queria muitos filhos, mas a natureza não ajudou, apesar dos esforços do Chiquinho, dos médicos e de um rol de missas encomendadas pelos pais dela. A aparente incompatibilidade das respectivas mucosas poderia ser sintoma de mais alguma coisa, ao menos figurativamente, mas Amélia continuava cega pelos prestígios do seu príncipe encantado e das suas lambuzadas atenções.

O amor, como se sabe, enquanto dura é para sempre e, neste caso, durou precisamente um ano e um dia. Foi na manhã seguinte à celebração do primeiro aniversário do seu casamento que Amélia, de olhos nos olhos do Chiquinho, o viu finalmente como ele era. Estava bem vestido, com as roupas que ela lhe tinha comprado. Acabara de ler “O Jogo” à pressa, já pronto para sair. Ia comprar um Rolex, pago por ela como prenda pela efeméride do dia anterior. Estava contente porque o Porto tinha ganho mais um campeonato e, dizia, “os outros que se lixem com o apito dourado”. Amélia surpreendeu-se a responder-lhe em pensamento “e tu mete o apito onde te der mais jeito”. Mas ficou-se com o pensamento.

Á noite, Amélia fingiu que se tinha deixado dormir a ver televisão e ficou estendida no sofá, a pensar na sua vida. Recapitulou o último ano, em que o marido nada tinha feito a não ser gastar dinheiro, a pretexto das suas inverificáveis capacidades de administração. Feita a conta-corrente final, Amélia concluiu que tinha ficado a perder. Chiquinho não só não tinha evoluído para o diamante que ela sonhava, como tinha agravado os seus muitos, agora evidentes, defeitos. “Nada”, disse-lhe o advogado no dia seguinte, “que lhe permita reclamar um divórcio”. “Ele não lhe bate, não a injuria, não tem amantes, ao menos que a senhora saiba e possa provar”. “A não ser que ele aceite um divórcio, e veremos as condições, vai ter de continuar a aturá-lo”. O padre, então, retirou-lhe as últimas esperanças: “minha filha, é o teu marido e deverás continuar com ele até que a morte vos separe. Até lá, aconselho-te a rezar para que a misericórdia do divino Espírito Santo vos ilumine e aconselhe”.

Algum tempo depois, Amélia, depois de muito hesitar entre o seu catolicismo e o puro e simples bom senso, decidiu revelar ao Chiquinho o que se passava. Falou durante mais de uma hora e apontou, com uma, nela, inaudita crueldade, tudo aquilo que a ofendia no seu marido. Este não se impressionou nem um pouco. Falou em divórcio e estipulou um preço. Por ele não era pecado, era um negócio. Também não gostava dela por aí além e, já agora, tinha casado por dinheiro. Mas, “não sou parvo”, nunca a tinha enganado. Foi este o momento em que Amélia começou a odiá-lo e, pior, a ter nojo dele.

Nessa noite, estava Amélia deitada no quarto dos hóspedes, a meditar sobre o desastre do seu casamento, quando a porta se abriu e entrou o Chiquinho. Estava nu, à excepção do Rolex a brilhar insultuosamente no pulso, e disse: “não pensavas que eu ia deixar de cumprir os meus deveres conjugais, pois não?”. “É que se tu não aceitares, disse o meu advogado, posso eu exigir o divórcio e ficar com metade de tudo o que tens. E para além do mais é a tua obrigação, ou os padres não te explicaram?”

Aí temos a Amélia e o seu marido nu. Vai cumprir ou não o seu contrato conjugal, sancionado pela igreja e pela lei? Vai ela em vez disso pecar, por divórcio, e deixar-se extorquir de metade do seu património?

Por: António Ferreira

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