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As ligações perigosas

Tresler

Milhares de pessoas a estender-se ao sol durante 8 a 15 dias sobre a areia fina; metade delas a tomar banho regularmente de forma a secar a água salgada na pele; outras tantas a fazer deste deitar e virar uma ciência de cremes e loções; todas elas orgulhosas da metamorfose da cor, apesar do nítido aborrecimento deste “farniente” de olhar o mar, disfarçado pela frescura da água e pela chilreada das crianças. As férias a banhos são isto e a praia a montra da exibição dos corpos, das modas, dos agregados familiares, raramente juntos tantos dias seguidos. Pelo meio, o ambiente agradável de uma feira com gente sempre em movimento. Pessoas nitidamente mais felizes na altura da partida com as marcas da eficácia do sol, por um lado abandonadas à preguiça, por outro à beira da saturação de não querer mais dias assim.

A praia é também espaço marcante de um jogo que desenvolvemos todos os dias: o jogo da sedução. A sedução, à partida, pode ser apenas o fenómeno (natural) de oferecermos e exibirmos o que de melhor temos aos outros, captando sobretudo o olhar para a nossa perfeição (ou escondendo as mazelas) e despertando o desejo ou a admiração. Jogo essencial ao nosso dia a dia. A praia constitui assim o sítio onde nos deixamos olhar e julgar mas também o lugar onde construímos conscientemente uma fisionomia que se supõe agradável aos outros, na cor da pele, nas roupas escolhidas, no corte de cabelo. E como poderia ser diferente se a vida atual está impregnada desta presença constante de imagens que outros fabricam como modelo para depois nós as afirmarmos como originais perante os outros? Somos pois, desde há alguns séculos, primeiro com a generalização do espelho, depois com os serões mundanos em que os dois sexos aprendem a conviver, finalmente com a moda e a sociedade da imagem e da informação, cidadãos mediatizados, submissos àquilo que está previsto nós sermos, ao mundo da sedução obrigatória.

A política e as artes são outros mundos em que as estratégias de sedução pressionam continuamente quem faz, sempre enfrentando desafios mais avançados perante o descontentamento inevitável do público. Como seduzir quem se seduziu e já não está seduzido? Como construir imagens que acompanhem o nosso tempo e consigam agarrar as pessoas a nós? Também é aqui que o sentido pejorativo da sedução mais incarnou: esta pode ser encantamento mas também engano, tanto mais pecado quanto mais dissimulado e consciente. Por isso odiamos os políticos, primeiro os adversários, depois os nossos, como se a imagem que fabricamos deles se fosse afastando e se tornasse para eles inalcançável. Por isso nos dececionamos quando um artista repete uma fórmula ou quando um político não traz ideias novas. Sendo a sedução um jogo de formas, parece que estamos mesmo à espera que os atores e políticos baralhem as (mesmas) cartas e deem novas formas surpreendentes àquilo que não pode ser diferente. Queremos mesmo que nos enganem. E a forma que surpreende, de inesperada, às vezes convence, mesmo se é igual ou vazia. É no entanto consensual que este jogo contínuo e tirânico de seduzir para o novo em que a sociedade atual está imersa, jogo que não produz líderes seguros como estávamos habituados a ter no passado, constitui também a condição de uma normalidade: a sedução generalizada produzida pela comunicação «salva-nos das guerras e do ódio», do «estatismo de antigamente» ou da «exacerbação da competição democrática, suavizando as relações sociais», nas palavras de Jean-Claude Kaufman, sociólogo francês.

Estas férias meti-me a ler um livro de leitura adiada há anos: “As Ligações Perigosas”, livro-chave da história da literatura, tanto na forma (uma história contada por cartas cruzadas entre meia dúzia de personagens) como no conteúdo (a sedução elevada ao nível da premeditação e da perversão), algo impressionante numa obra surgida poucos anos antes da Revolução Francesa. Valmont, o protagonista, é mais do que Casanova, que não consegue controlar o seu desejo de seduzir e possuir mulheres, muitas mulheres, vendo-as de modo absoluto e glorificando-as como objetos de desejo, quase numa embriaguez; Valmont é mais do que D. Juan, que conquista mulheres sem fim, identificando as suas “presas” e abandonando-as em seguida numa deriva a que ele mesmo não consegue resistir; Valmont (e a sua parceira Marquesa de Merteuil) é mais do que isso, é o gosto da perversão levado ao extremo da previsão da queda fragorosa do alvo que se elegeu e iludiu durante um tempo prolongado, furando todas as regras e convenções sociais, sabendo que os seus atos levam à dor e mesmo à morte. É que Valmont e a Marquesa ficam depois a apreciar o estertor e o fim das presas que caíram na sua teia.

A obra, lida à distância do seu tempo, é uma metáfora poderosa das relações sociais. A sedução, mecanismo de engano e ilusão, tem os seus limites no amor e na vida comum, na sociedade do espetáculo e na política. Quanto aos políticos, que se cuidem; quanto maior a ilusão ou a perversão fabricada, maior a força que os varrerá de cena.

(Choderlos de Laclos, “As Ligações Perigosas”, 1782; L’Art de la Séduction, nº especial do LE NOUVEL OBSERVATEUR, julho 2001)

Por: Joaquim Igreja

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