As escolas e a sociedade, em geral, impelem as mulheres a serem organizadas e comedidas, mas raramente as ensinam a serem corajosas. Annie Ernaux, no livro “O lugar”, consegue um registo que mais do que honestidade, é coragem: «Juntarei as palavras, os gestos, os gostos do meu pai, os factos marcantes da sua vida, todos os sinais objectivos de uma existência que também partilhei. Nenhuma poesia da recordação, nada de alegre zombaria».
As páginas são breves, mas as palavras não, e “O lugar”, muito mais do que um espaço físico, é um espaço social e político.
Num retrato autobiográfico, a autora descreve um mundo em que o campo e a cidade estão em permanente conflito, e na passagem de um para o outro, ela sente que traiu o seu ninho. Aliás, antes do livro sequer começar surge na epígrafe a citação de Jean Genet: «Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando se traiu». Os seus pais são pessoas simples e, como todas as pessoas simples, querem dar o melhor à sua filha, mas esse melhor implica mudar, esse melhor implica romper com os vínculos seguros.
Sempre cresci com a ideia de que raros são os jovens que querem permanecer no campo, e raros são os pais que querem sair de lá e essas diferenças acabam por atrapalhar, confundir e distanciar, mesmo quando não é intencional, mesmo quando se trata de apenas um “salto”. O pai aparece aqui como um pequeno comerciante de origem operária, e a narradora mais do que querer ver a mulher em que se tornou, quer libertar-se dos embaraços da infância.
Na vida de ambos surge esta incompatibilidade desconcertante: «Enervava-se de me ver todo o dia enfiada nos livros, atribuindo-lhes a minha cara-de-pau e o meu mau humor. A luz debaixo da porta do meu quarto, à noite, levava-o a dizer que eu dava cabo da saúde. Os estudos eram um sofrimento obrigatório para chegar a uma boa situação e não casar com um operário. Mas que eu gostasse de matar a cabeça parecia-lhe suspeito (…) Dizia que eu aprendia bem, nunca que trabalhava bem. Trabalhar, só era trabalhar com as próprias mãos».
Traçando a história através dos olhos do pai, Annie Ernaux não se foca em datas, horas, lugares e nomes, pois a quem importa responder às cinco perguntas do jornalista se as palavras forem as ações? De linguagem objetiva e sem julgamentos, as memórias permanecem iguais a si mesmas – fragmentadas e difusas. E nesta escrita que nada teme recordo uma França de Beauvoir, Proust e Bourdieu, uma França de Liberté, Égalité, Fraternité.
Melanie Alves
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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