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Alemanha vezes dois

Tresler

Portugal 5 – Alemanha 0. A sensação de supremacia perante a campeã do mundo lança ironia que baste sobre o debate à volta da disputa pequenos-grandes. A Grécia também defrontou a Alemanha no Europeu de há três anos mas perdeu. Esta já cá canta.

A Alemanha no entanto é outro mundo. Caldeada ao longo dos séculos nos confrontos da Europa Central e nas discussões religiosas, formada no meio de uma forte cultura científica e numa instituição universitária poderosa, tornou-se a partir do séc. XIX um país simultaneamente sábio e temível. Um país sem medo de convulsões e em que as forças vêm para a rua debater e digladiar-se para mudar. Basta olhar para o século XX alemão e ver a sucessão de choques e contrachoques que fizeram a Alemanha avançar e recuar, tremer, desagregar-se, recompor-se e fortalecer-se. É primeiro a força do Império Alemão construído sobre a vitória na guerra franco-prussiana, com a anexação da Alsácia e da Lorena; o eclodir da 1ª guerra mundial; as fortes represálias no pós-guerra; a consolidação do nazismo e de Hitler; a 2ª guerra mundial; a recuperação económica; a separação das duas Alemanhas; o muro de Berlim; a unificação alemã; a liderança europeia. Que país se pode gabar de ter esta dinâmica, de em poucos anos se restabelecer, de assumir mesmo uma liderança moral como se “a” razão estivesse (só) do seu lado?

Do lado dos portugueses as opiniões dividem-se quanto à figura de Merkel mas todos admiram o gigante económico a quem compramos os Mercedes e Audis (que preferimos aos carros franceses ou orientais) e que nos recebeu os emigrantes quando a França começava a saturar. Mas curiosamente não é um destino turístico muito procurado pelos portugueses.

Günter Grass, em “O meu século”, vai pintando este evoluir da Alemanha dando a palavra a diferentes personagens que narram pequenas histórias, todas elas com a Alemanha como pano de fundo e um epíteto de “perigosa” colado ao nome. Um exercício de discurso direto ajudará os leitores a sentirem mais que a entenderem o tamanho da desgraça ou a força do país. O livro começa pela figura do Kaiser (imperador alemão) a falar aos soldados que embarcam para a China em 1900: «Quando lá chegardes, perdão não vai haver, não serão feitos prisioneiros». Ou a referir em Marrocos, em 1905, que a Alemanha está a ser cercada: «Os russos, os ingleses e os franceses coligam-se para nos encurralar». Em 1914 o entusiasmo é grande no início da guerra, com «muitas turmas de alunos do liceu a oferecerem-se em peso como voluntários». Em 1917, a “guerra do gás” leva a crueldade ao horror: «Com o gás de cloro, aos arrancos, dias a fio, acabavam por vomitar os pulmões aos bocados». Em 1919 já depois da guerra, «depois daquele Inverno rigoroso, batatas, viste-las, era só nabos. “Sabem a arame farpado”, dizia o mê home, quando veio de licença». Em 1924, um dos narradores sublinha: «Não tínhamos nós sido suficientemente humilhados? Não tinha a paz imposta pelo tratado constituído uma enorme sobrecarga?». Em 1926 alguém recorda o exílio do Kaiser na Holanda e o hábito de no exílio «abater árvores com as próprias mãos (…). Fazia-o diariamente» (apesar de ser desde a nascença aleijado de um dos braços). Em 1931 Grass mostra-nos os “camisas castanhas” a manifestarem-se em multidões temíveis: «Aproxima-se o fim da escuridão! Novos estandartes se erguem!». Em 1932 o famoso olhar de Hitler, colado a uma voz supermetálica, afirma-se junto das multidões: «Levávamos connosco aquele fogo que o olhar do Führer acendera em nós para que ardesse sem fim». Mas também a recusa do fenómeno nazi pelos inteletuais: «Não consigo engolir tanto quanto me apetece vomitar», diz Max Liebermann em 1933. Em 1938 a chamada “Noite de Cristal” para aterrorizar judeus leva a uma reação de passividade dos alemães: «Quase toda a gente de Esslingen assistiu muda ou simplesmente fingiu que não viu». Em 1943 a morte de 50.000 judeus no gueto de Varsóvia é contada pelo autor daquele foto famosa: «Em primeiro plano um garotinho amoroso, com o boné à banda e meias até aos joelhos». 1945 é o pretexto para focar as pressões sobre os jornalistas: «Quando a guerra se aproximava do fim e já só havia estragos e perdas a relatar, ainda vinham pedir-nos – e isso até ao último instante – que apelássemos à resistência». O pós-guerra é para muitos um período de miséria e pilhagens aos depósitos de carvão: o inverno de 1947 é extremamente frio e «a maior parte das salamandras estavam apagadas. Os velhos já não saíam da cama». Em 1948 com a criação do marco alemão as coisas melhoram e as montras começam a encher-se. E por aí adiante.

Aqui fica este aperitivo para ler um autor sempre polémico, recentemente falecido, que criticou tão vigorosamente o período nazi e tão inesperadamente a unificação alemã por receio do que a história poderia fazer da Alemanha. Por outro lado, Grass viu-se depois desautorizado quando ele próprio confessou a sua pertença, em jovem, às WafenSS nazis (enfraquecendo a sua “força moral”). Quanto à Alemanha atual e ao poder (eventualmente excessivo) que demonstra, vale a pena citar o embaixador José Cutileiro a citar de Gaulle sobre as duas Alemanhas: «De Gaulle dizia gostar tanto da Alemanha que preferia que houvesse duas». (Günter Grass, “O meu século”, 1999)

Por: Joaquim Igreja

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